sábado, 17 de julho de 2010

Crianças Descartadas

 

Manoel Peres Sobrinho*

 

Disse Martin Buber, filósofo e ideólogo judeu, autor da clássica obra "Eu e Tu" que "com a criança, o gênero humano começa a cada dia, a cada instante". Ao correr dos olhos pelo belíssimo romance "Quando eu voltar a ser criança" de Januz Korczak, cognome de Henrik Goldsmit, o médico humanista, professor, educador , escritor e reformador, pode-se sentir que as palavras de Martin Buber, acima mencionadas, têm a sua razão de ser. Amigo das crianças que era Korczak procurou doar a elas uma pouco de amor, já que como nos diz Tatiana Belinky, na apresentação da edição brasileira do romance de Korczak, são vítimas de "tantas incompreensões, arbitrariedades, autoritarismo, injustiça, violências morais e físicas que têm de suportar, calada e submissa. Até as manifestações do carinho de certos adultos são tantas vezes grosseiras, desagradáveis e humilhantes". O mundo da criança é o mundo dos sonhos. O mundo onírico do "faz de conta", onde a pureza, o mágico e o imaginoso fazem parte da realidade.  Onde a irisada bola de sabão colore a imaginação e energiza a criatividade, despertando-a para os sonhos e a fantasia. É onde a realidade e o fictício não têm fronteiras. Talvez seja exatamente por isso que assim anuiu Korczak: "Se soubesse naquela época (quando era criança) nunca teria feito forças para crescer. Ser criança é muitas vezes melhor. Os adultos são infelizes. Não é verdade que eles podem fazer o que querem. Têm até menos liberdade do que as crianças."

     Ao olharmos a realidade brasileira, já pelos anos de 1984, a Funabem – Fundação Nacional do Bem Estar do Menor – tinha dados alarmantes e inglórios sobre a realidade das crianças de rua brasileiras. Existiam no Brasil cerca de 25 milhões de menores abandonados e carentes. O que significa que este grande número de menores se encontrava desprovido de recursos mínimos e básicos para uma vida decente como habitação, alimentação, saúde, educação, higiene e segurança. Este problema detectado em número apresentava "um quadro de características bem definidas quanto aos aspectos sociais, pedagógicos, psicológicos e de saúde. Noventa e oito por cento eram portadores de verminose, 85% eram desnutridos, 86% tinham cárie  dentária e 70% eram portadores  de anemia. Duzentos e dez mil deste total de 25 milhões de marginalizados infantis tinham problemas de conduta sendo considerados, pela nossa sociedade, como infratores.

     No Rio de Janeiro feita uma pesquisa constatou-se que de fato e de verdade de cem menores presos, 78% delas viviam em lares incompletos, ou ainda, o que é mais grave, não tinham sequer um teto para morar. Dos que viviam com a família, 78% pertenciam a grupos familiares que ganhavam até um salário mínimo. Oitenta e sete por cento moravam em favelas e 96% tinham o  curso primário incompleto ou eram analfabetos; 94% não tinham qualquer atividade ocupacional e 80% não comiam o mínimo exigido pela Organização Mundial de Saúde. Além dos problemas que afetam diretamente o físico, o menor abandonado conta com outro problema indesejável: a realidade da carência afetiva. Segundo a psicóloga Fátima Tavares Brasil "as crianças precisam de imagens parentais internalizadas. Imagens boas, firmes, estáveis." Ela acredita que a "dissolução de lares é muito traumático para as crianças. Às vezes os pais não são separados de fato, mas mantêm um relacionamento altamente conflitivo o que tão pouco permite que as crianças tenham um desenvolvimento emocional estável."

     "Sabe-se que, continua a Dra. Fátima, se uma criança nunca tiver feito uma ligação afetiva com uma pessoa humana, ela poderá até morrer de depressão. Mas a criança abandonada – mesmo aquela amparada por uma instituição – não tem noção de família. Permanece afetivamente carente."

     Se para algumas crianças, o fato de ser criança é viver no "mundo dos sonhos", certamente para milhões de crianças  carentes e abandonadas que existem no Brasil hoje, o seu mundo é de tragédias e pesadelos. Assim como os índios, os pobres, os aposentados, os favelados a criança de rua vive à margem da sociedade sendo proibida de usufruir dos bens materiais que nossa civilização produziu. É o pesadelo de uma triste realidade que insiste em não abandoná-los, mesmo que o Senhor Jesus tenha dito "que dos tais é o Reino dos Céus". Se nos céus há um lugar para elas, no entanto, aqui na terra terão ainda muito que esperar.

 

 

 (*O autor é mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universiade Presbiteriana Mackenczie).

 

 

 

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