Manoel Peres Sobrinho
No dia um de novembro de 1922, morria Afonso Henriques de Lima Barreto. Não há registro de filhos, esposas ou amantes. Sua morte, aos 42 anos de idade, pode parecer prematura, nos dias que correm. Entretanto, na época, era bem comum falecer ao passar da quarentena. Isto ocorria, ainda mais freqüentemente, entre os pobres e suburbanos. Como eles, o escritor enfrentou o vício do álcool, doenças, poucos recursos, inúmeros problemas pessoais e familiares. Não deixou fortuna material de alguma importância, além de sua obra literária – Luiz Carlos Lopes, in O Homem que Sabia Português.
Passados 88 anos de sua morte, Lima Barreto, mais do que nunca está vivo e presente na mente e no coração dos estudiosos da Literatura Brasileira, porque fez do seu ofício de escritor, por escolha pessoal, um instrumento de libertação do seu povo. Era a maneira, como um menino pobre, mulato, que vivia no subúrbio da capital, segregado com outras minorias, podia contribuir para compreensão de seu tempo. Lima Barreto tinha um amor infinito pelo trabalho intelectual, uma paixão sem limites por qualquer forma de saber e a vontade férrea de servir ao seu povo como um grande escritor, diz-nos Lopes. A idéia de escrever, compreender o mundo, interpretá-lo à sua maneira e tentar transformá-lo, o seduzia como uma musa encantada, fazendo-o viver só para isso. Talvez tenha sido isso que o manteve vivo por muito tempo. Tudo na vida de Lima Barreto foi emblemático, intenso e aterrador. Sua vida é a síntese de uma época, onde forças profundamente antagônicas lutam para sobreviver numa avassaladora ética darwiniana. Momentos de grandes transformações políticas, culturais, econômicas abundam e investem no imaginário do brasileiro e principalmente do carioca do final do século XIX e início do século XX. Entre a agonia do Império que já se fazia moribundo entre as forças vivas da sociedade e o nascedouro da República como o mais pertinente engajamento político da modernidade, vive Lima Barreto, fazendo de sua literatura um instrumento para separar o joio do trigo, num momento em que todos fazem de tudo para crer que a República é uma nova aurora para todos. Mas, como em outras mudanças políticas, essa visão se mostrou falaciosa e descomunalmente segregadora em que só ganharam aqueles que estavam muito próximos do poder. Os demais deram o sangue na construção da nova sociedade carioca, mas não participaram das suas regalias. Pelo contrário, muitos nem sabiam muito bem o que estava acontecendo, tal era a distância entre o verdadeiro ideário republicano e seus executores e o povo como sustentáculo político.
Nascido a 13 de maio 1881, sete anos depois, a convite de seu pai, foi até a praça principal da cidade do Rio de Janeiro ver a Princesa Isabel ler, da sacada do seu palácio, a Lei que a todos os escravos dava sumária liberdade. Sua visão da princesa era de um ser jovial e angelical. A perda da mãe precocemente, quando tinha seis anos apenas, o levou a sentir um grande vazio em seu interior e formação psicológica, chegando mesmo a declarar que essa falta o fez ser mais rude, desconfiado e menos dócil. De alguma maneira, Lima Barreto, traz em si a síntese das três culturas fundamentes de nosso povo: a cor negra da pele dos africanos, a idéia índia de liberdade sem submissão a todo custo e o comportamento europeu com o vestuário e os artefatos lingüísticos. Homem de seu tempo recusou investir no tipo de expectador da história. Pelo contrário, fez parte dela buscando interpretá-la, dando sentido à sua existência nesse tempo de tanta negação de direitos e imposição de deveres forjados por uma pseudo elite que se fazia dona de tudo e acima de bem e do mal. Como pré-modernista rompe com as tradicionais escolas literárias para valorizar a função da literatura como expressão da realidade que interpreta, critica ou recria em seus textos. Daí não se importar em usar linguagem que se identifique com a cultura da rua, dos falantes suburbanos, cujo pensamento é mais cheio de vida e de nuances culturais do que de retórica lingüística. Por isso, pagou o preço com o epíteto de descuidado. O fato é que Lima Barreto, Monteiro Lobato e Euclides da Cunha formaram a tróica que definiu o início de um momento de busca de identificação com o brasilianismo. Dar início a algo que deveria se concretizar no ano da sua morte: a Semana de Arte Moderna de 1922. A tentativa de rompimento definitivo com as tradições literárias e culturais européias.
Como incansável investigador e arguto pensador a tudo criticou, porém com lealdade e não como artifício para projeção pessoal. Assim, como enalteceu aqueles que tinham valor, principalmente algum escritor novo ou poeta obscuro. Duas vezes tentou o ingresso na Academia Brasileira de Letras, e na terceira retirou a sua candidatura. Deixou uma obra profunda de humanismo e atualidade. Fez da sua arte um instrumento de decodificação de sua época, buscando discernir os meandros entrelaçados das ideologias daqueles que tentaram ditar o certo e o errado. É um autor que fascina, por isso não se faz entediante. É alguém com quem se pode fazer amizade ou traçar planos acadêmicos sem a prevenção de que se possa, de alguma forma, vir a ter os ideais traídos.
(*O autor é membro da Academia Votorantinense de Letras, Artes e História)
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