EDITORIAL: Respeito à cultura do povão

Notícia publicada na edição de 19/08/2011 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 3 do caderno A

A proposta votorantinense demonstra respeito pelos valores da população e uma compreensão acima da média do que seja a arte do povo

Num tempo em que muitos gestores culturais se rendem sem grandes pudores à cultura de massa, mais interessados na quantidade de pessoas que os eventos serão capazes de reunir do que na qualidade artística das produções culturais oferecidas à população, merece ser destacada a boa vontade com que o prefeito de Votorantim, Carlos Augusto Pivetta (PT), secundado por seu secretário de Cultura, Clayton Leme, recebeu um grupo de representantes de circos familiares e se comprometeu a criar facilidades para que a cultura circense volte a vicejar em sua cidade.

No setor cultural, as coisas nem sempre são o que parecem. Aquilo que, numa análise superficial, pode afigurar um sucesso do ponto de vista do lazer e entretenimento - um evento que reúne vinte ou trinta mil pessoas, por exemplo -, pode não ter significação alguma como manifestação cultural. E, especialmente quando as atrações no palco repetem aquilo que a população já ouve no rádio e assiste na TV aberta, ocupando com clichês um espaço que poderia ser palmilhado por expressões autênticas da alma popular, não restam dúvidas de que o dinheiro público é mal empregado.

Foi, sem dúvida, a falta de (re)conhecimento do que seja a verdadeira cultura popular (aquela que tem o povo como seu grande inventor e protagonista) o que relegou o circo e sua rica tradição artística para um sofrido ostracismo a partir da década de 1970, em cidades do interior de São Paulo como Sorocaba. Não é mera coincidência que o circo tenha sido preterido pelos gestores públicos num momento em que a TV ganhava os lares, oferecendo lazer barato e, além disso, impondo modismos que iriam compor uma nova subcultura urbana, repleta de valores enlatados e lugares-comuns.

Também o medo de tragédias como a que matou perto de 500 pessoas em Niterói, no Natal de 1961 (quando o Gran Circus Norte-Americano foi incendiado por um ex-empregado) contribuiu para inviabilizar, pela imposição de pesadas exigências, a instalação de circos em muitas cidades. Em Sorocaba, o Código de Obras de 1966 (lei nº 1.437) já determinava que os circos só poderiam ser armados em terrenos que não fossem públicos, distantes no mínimo 50 metros de residências, e condicionava a liberação a vistorias para verificação da segurança das instalações.

É curioso observar como o circo - e especialmente essa forma peculiar de espetáculo itinerante que fez tanto sucesso em Sorocaba durante boa parte do século passado, o circo-teatro - passou a ser revalorizado nos últimos anos, a partir de um movimento vigoroso desencadeado quase que simultaneamente em diversas cidades (Sorocaba e Votorantim entre elas), mas continuou atado às restrições impostas em décadas passadas, algumas delas necessárias para garantir a segurança, outras nitidamente destinadas a inviabilizar sua permanência.

Pedidos de apoio, no sentido de diminuir as exigências burocráticas e proporcionar alguma estrutura para os circos pequenos, vêm sendo levados ao poder público há vários anos. Mas, apesar de projetos de e sobre circo terem sido financiados de quando em quando por meio de leis de incentivo, pouca coisa mudou objetivamente para tornar autossustentável essa manifestação da cultura popular.

É por isso que a proposta votorantinense é tão significativa. Ela revela respeito pelos valores da população e uma compreensão acima da média do que seja a arte do povo. Se levada a efeito com a mesma boa vontade com que foi anunciada, renderá muitos e bons frutos para os artistas circenses, para o público regional e para o município como um todo, que tem sido feliz em tantos outros projetos. Valorizar o artista popular é valorizar o Brasil, com tudo o que ele tem de mais rico e diversificado. Votorantim compreendeu isso e merece os parabéns.