sábado, 12 de novembro de 2011

De sanguessugas

 Notícia publicada na edição de 12/11/2011 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 2 do caderno A 

Você prefere ser sugado por uma bicha francesa ou por uma bicha alemã? Não! Não se assuste! Antes que pense mal quero dizer que minha pergunta refere-se a anúncio inserido no Correio Paulistano (29/03/1859)
 Cachoeira está infestada de sanguessugas
Título da reportagem de Samira Galli,
Cruzeiro do Sul, 30/10/2011

- Edgard Steffen

Câncer na laringe do Lula, economia da Europa despencando, agitação política em ano pré-eleitoral, ministros balançando ou caindo quase fizeram passar despercebido curioso problema de quem se arrisca nadar na Cachoeira da Chave, em Votorantim. Incômodos ectoparasitos grudam nas pernas dos banhistas, assustando-os. Se você é banhista e frequentou o local, não se preocupe; sanguessugas não costumam transmitir doenças.
A matéria levou-me lembrar dos tempos em que eu dava aulas de Zoologia no cursinho preparatório à Faculdade de Medicina. Ao rever a biologia dos bichinhos, encontrei curiosidades. Sanguessugas são invertebrados que pertencem à mesma classe das minhocas (Classe Annelida) caracterizada por possuir corpo dividido em anéis. As espécies da Ordem que as agrupa (Hirudinea) possuem ventosas para melhor grudar ao hospedeiro, pequenos dentes para cortar a pele e glândulas salivares que produzem várias substâncias: histaminoide vasodilatador para melhor acesso ao sangue, hialuronidase para impedir a cicatrização imediata da mordida e hirudina impeditiva da coagulação do sangue do freguês. Tudo isso mais um anestesiante para que a dor não assuste o sugado.

Você prefere ser sugado por uma bicha francesa ou por uma bicha alemã? Não! Não se assuste! Antes que pense mal quero dizer que minha pergunta refere-se a anúncio inserido no Correio Paulistano (29/03/1859). "Bicha" no português falado em Portugal, quer dizer fila. No Brasil pode ser aquilo que você maliciou, mas também pode significar tanto "lombriga" como "sanguessuga". O pesquisador-médico Nelson Di Francesco* colheu vários reclames, inseridos por barbeiros paulistanos, nos jornais de antanho. Além das artes de navalha e tesoura, nossos fígaros ofereciam "tirar, chumbar e separar dentes" a qualquer hora do dia ou da noite. Verdadeiro pronto-socorro odontológico. Mas, o negócio mais lucrativo para as barbearias do Século XIX poderia ser a venda ou aluguel de "bixas" hamburguesas ou francesas**. Vendiam-nas a 40 mil reis o cento ou as alugavam (mínimo de 10) a 500 reis cada uma.

Nicander de Colofon (200-130 a.C.) foi, provavelmente, o primeiro médico a utilizar sanguessugas com fins medicinais. Os hirudíneos que infestam a cachoeira são minúsculos se comparados ao Hirudo medicinalis e outras espécies usadas para sangria terapêutica. Sangrias andaram na moda até a primeira metade do Século XX. Como os modismos vão e voltam, em 2004, a FDA (Foods and Drugs Administration) permitiu uso das sanguessugas em determinadas circunstâncias. Por exemplo, nos enxertos de lábios, orelhas e na cicatrização das amputações, para combater o excesso de sangue no coto cirúrgico, por falta de circulação de retorno.**

Sobre os modismos na Medicina, Molière (Século XVII) foi implacável. Cena do "Le Malade Imaginaire" apresenta candidato a médico sendo examinado por cinco professores. Estes lhe perguntam qual o tratamento para hidropisia, hipocondria, dor de cabeça, dor no peito, e muitas outras doenças. A resposta era invariável: aplicar clister, fazer sangria e, em seguida, administrar purgativo. Os examinadores satisfeitíssimos com as respostas o consideram apto a exercer a profissão.

Não querendo exagerar -- e já exagerando -- penso em Molière quando vejo a Medicina atual "restringir gorduras e carne vermelha, recomendar andança e controle do colesterol". Panaceia para quase tudo. Os hirudíneos que infestam a cachoeira do Rio Sorocaba são muitos, porém, minúsculos. Os sanguessugas que infestam Brasília, além de numerosos, são enormes e poderosos. Derrubam até ministros...

(*) Di Francesco, N. - Suplemento Cultural da APM - n° 229 - pág 5 a 7.
(**) Substantivo feminino grafado com "x" no Século 19
(***) Vários autores - Rev. Brasil. de Ortopedia. e Traumatologia, maio de 2007

- Edgard Steffen é médico pediatra (edgard.steffen@gmail.com)

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