quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O outro olhar: produtores culturais de Sorocaba e Votorantim experimentam produção audiovisual com cegos, agora em Porto Velho




Em 2003, inspirados pelo documentário Janela da Alma (Walter Carvalho e João Jardim); Míriam Cris Carlos e Werinton Kermes resolveram experimentar levar a fotografia para deficientes visuais. No documentário que inspirou os sorocabanos, Evgen Bavcar, fotógrafo cego e filósofo, conta como resolveu superar suas limitações – a ausência de visão – para fotografar.  
Na época, pesquisando, Míriam viu que não havia experiências similares no Brasil. A dupla entrou em contato com a ASAC (Associação Sorocabana de Assistência aos Cegos) e com o professor Fernando Negrão, da UNISO (Universidade de Sorocaba), e começaram uma oficina, da qual participaram 14 deficientes visuais.
Esta oficina produziu resultados inesperados, ganhou seguidores em todo o país e fez de Teco Barbero, um dos participantes, um fotógrafo com baixa visão, hoje, conhecido em todo o Brasil. Barbero realiza palestras, fotografa e ensina a outros aquilo que, na primeira experiência realizada no Brasil, parecia algo impossível, coisa de malucos. O grupo que viveu esta experiência pioneira foi a Belo Horizonte e lá, no Congresso Arte sem Barreiras, conheceu Evgen Bavcar, que foi fotografado.
Werinton Kermes menciona que, na primeira oficina realizada em Sorocaba, uma das atividades foi levar o grupo ao cinema. A perplexidade era enorme já na fila para o ingresso. As pessoas que ali estavam se perguntavam: como? Cegos indo ao cinema? Qual o sentido disto? Porém, comprados os ingressos e o grupo preparado para assistir ao filme, a emoção se fez enorme, bem como a constatação de que um grupo de cegos apreendia detalhes que aqueles que enxergam deixavam passar. O filme era Cidade de Deus. O número de tiros. A tensão da música e do silêncio. Nada da narrativa passou despercebido ao ouvido e à sensibilidade do grupo. "Ali percebemos que a produção audiovisual poderia ser também um desafio muito interessante!", afirma Werinton Kermes.
Werinton e Míriam levaram a mesma experiência para Belém (PA), por duas vezes, a convite do fotógrafo Luís Braga. Realizaram, ainda, uma oficina no SESC Pinheiros, da qual participaram pessoas que enxergavam, mas que viveram a ausência de visão e a captação de imagens com os olhos vendados. Agora, o trabalho segue rumo a Porto Velho (RO). Só que desta vez será diferente: uma oficina de produção de audiovisual. O convite partiu dos organizadores do Cinefest Amazônia.
A oficina acontece nos dias 16, 17 e 18 de novembro. O objetivo é resultar em um documentário produzido pelos participantes.  Míriam Cris Carlos explica o que a inquietou e a levou à primeira oficina: "Somos hiperbolicamente visuais. Por outro lado, vivemos em corredores por onde os fluxos humanos circulam em multidões de indivíduos solitários, sem comprometimento uns com os outros. 
Para desestruturar esta crise da visibilidade, cabe a tarefa de encontrar os outros sentidos e render o olhar do excesso imagético que nos fez cegos sem deficiência visual.  Resta encontrar novamente a tridimensionalidade e com ela resgatar o corpo carne, até então transformado em imagem e espetáculo. 
Pensando nestas questões, compreendemos que ver não é privilégio do olhar, melhor dizendo, dos olhos. Imagens se constroem de dentro para fora e vice-versa, imagens internas, que, inquestionavelmente, são imagens, são textos produzidos pela conjunção de todos os sentidos, pelo corpo. Imagens são produzidas com o tato, com o olfato (não temos uma memória olfativa?) e com o paladar. Imagens sonoras nos cercam ainda pelo rádio e pelas narrativas orais. 
Assim, inspirados pelo filme Janela da Alma, de Walter de Carvalho e João Jardim e pelo fotógrafo cego Evgen Bavcar, cremos na possibilidade da produção da imagem fotográfica por deficientes visuais, cuja sensibilidade corporal será capaz de recortar a realidade que os cerca, registrando-a fotograficamente e por meio do audiovisual. Sabemos que, mesmo não podendo confirmar o resultado de seu produto, por meio do conceito tradicional de visão, ele poderá prevê-lo, narrá-lo, confirmá-lo pelo relato de alguém que vê a imagem produzida, ou, ainda, no caso do audiovisual, recriar ele mesmo aquilo que produziu, mediante a audição". 
Werinton Kermes explica que a experiência com a produção de audiovisual por cegos não é nova. Já aconteceu em Natal (RN), e há, também, um diretor de cinema de Brasília que é cego. "Como fomos pioneiros no Brasil com o trabalho fotográfico, queremos um novo desafio".
Jorge da Mata, cinegrafista profissional, se engaja nesta nova etapa e acompanha a dupla no trabalho em Porto Velho. Míriam Cris Carlos relata que os objetivos do trabalho são discutir a comunicação e suas diversas formas; discutir a percepção, o espaço e a experiência; discutir o poético e a poética da imagem e do som; compreender a comunicação do deficiente visual e o seu universo de construção de imagens. Também se espera criar mecanismos que possam facilitar a prática da fotografia e da produção de audiovisual por deficientes visuais, além de realizar a produção de imagens fotográficas e audiovisuais sem a utilização da visão, por meio da exploração de outros sentidos como o tato, olfato e audição. Sobretudo, o desejo é explorar o acaso, o erro e a quebra de paradigmas na construção estética da fotografia e do audiovisual, criando videografias corporais, ou seja, realizadas por meios dos outros sentidos.
O resultado será editado e exibido no próprio festival de Rondônia. Porém, mais do que tudo, o que se deseja, explicam os coordenadores da oficina, é incentivar a superação de limites e a inclusão. Para isto, participam da oficina também pessoas que enxergam, com o objetivo de se tornarem multiplicadores da experiência.


Texto: Míriam Cris Carlos




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