quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A lei Maria da Penha existe só no papel?

  Notícia publicada na edição de 01/12/2011 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 2 do caderno A
A relação de poder desigual não faz parte apenas da realidade brasileira, mas é um fenômeno mundial. A discriminação contra a mulher e a desigualdade de gênero são componentes que movem a violência contra a mulher, em especial a violência doméstica
Em nossa tradição cultural, durante muitos anos existia a ideia de que um esposo poderia matar sua mulher adúltera, sendo que obviamente o contrário não era verdadeiro. Tal conceito inclusive deu origem à tese da legítima defesa da honra do esposo enganado. A partir desta retrospectiva histórica, a impunidade dos casos de violência doméstica contra as mulheres perdurou e continua, até hoje, a fazer parte da nossa cultura patriarcal. Exemplos relativamente recentes são muitos como os casos: Márcia Leopoldo, morta pelo ex-namorado em 1990; Sandra Gomide, morta pelo ex-namorado em 2001 em Ibiúna; Eloá Pimentel, morta por seu ex-namorado em 2008; Elisa Samudio, morta em 2009; Maria Islaine Moraes, morta por seu ex-esposo em 2010; Mércia Nakashima, morta em 2010; e tantas outras mulheres brasileiras, "Marias da Penha" que sofreram ou ainda sofrem em razão da violência de gênero.

A relação de poder desigual não faz parte apenas da realidade brasileira, mas é um fenômeno mundial. A discriminação contra a mulher e a desigualdade de gênero são componentes que movem a violência contra a mulher, em especial a violência doméstica. A visionária escritora Simone de Beauvoir, brilhantemente interpretada por Fernanda Montenegro na peça Viver sem Tempos Mortos, já dizia que "não se nasce mulher: torna-se". Neste processo de "tornar-se mulher" existem muitos desafios, dentre eles a busca pelo equilíbrio nas relações de poder.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, é estimado que entre 40% a 70% dos homicídios de mulheres são praticados por seus parceiros ou ex-companheiros durante uma relação abusiva. O custo da violência é muito alto, estima-se que no estado de São Paulo chega a 3% do PIB. No Brasil, segundo pesquisa Ibope de 2009, 55% dos entrevistados conhecem casos de agressões contra as mulheres e a maioria não confia na proteção jurídica e policial à mulher. Temos que voltar à evolução do sistema de proteção para entender a razão de as pessoas não confiarem na proteção jurídica.

A primeira etapa da evolução dos direitos humanos das mulheres consistiu no reconhecimento formal destes direitos com a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, com a Convenção de Belém do Pará e muitos outros instrumentos internacionais que reconhecem a obrigação dos estados em desenvolver políticas públicas voltadas à proteção das mulheres. No âmbito nacional, o marco maior foi em 2006 com a Lei Maria da Penha. Esta traz grandes mudanças: adota uma perspectiva de gênero, enfatiza a prevenção, se aplica a todas as mulheres, inclusive aquelas em união homoafetiva e, finalmente, estabelece o acesso à justiça como um de seus pilares.

A segunda etapa consiste na efetivação destes direitos, ou seja, tirar a lei do papel e fazê-la acontecer. Um exemplo desta iniciativa foi um acordo (TAC) feito entre o Ministério Público do Estado de São Paulo e a Prefeitura de Votorantim, no qual ficaram estabelecidas quais as políticas públicas necessárias e seus prazos exatos para dar aplicação prática à lei Maria da Penha, como transporte para vítimas, equipe multidisciplinar (atendimento psicossocial), e abrigo emergencial, dentre outras.

O reconhecimento formal da época de Beauvoir já aconteceu, nesta nova etapa, o que conta mais são as mudanças culturais e estruturais da sociedade, do movimento social, dos políticos e dos agentes jurídicos (promotores de justiça, juízes, advogados e policiais), que precisam entender de uma vez por todas que "Tapa de amor dói", "Mulher não gosta de apanhar" e "Em briga de marido e mulher se mete a colher", assim, despidos de preconceito, poderemos nós os brasileiros, homens e mulheres, exigir que a lei Maria da Penha saia do papel urgentemente.

* Fabiana Rocha Paes é promotora de Justiça em Votorantim, coordenadora do 4º Núcleo de Direitos Sociais, mestre em Direitos Humanos pela Universidade de NSW, Austrália, estudante regular do curso de Doutorado da Universidade de Buenos Aires, professora do curso de Promotoras Legais Populares.

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