domingo, 24 de junho de 2012

Para ouvidos atentos e curiosos

Notícia publicada na edição de 24/06/2012 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 002 do caderno C
Andrea Alves


Contador de histórias Zé Bocca e o músico Maurício Toca realizam intervenções no Terminal Urbano e na Biblioteca Municipal de Votorantim



 No Terminal: alguns ignoram, outros olham desconfiados, há os que disfarçadamente fogem e tem também os que se "rendem" a uma boa história - Por: FOTOS: ALDO V. SILVA

 Por: ALDO V. SILVA


Contar histórias é uma arte. Era contando histórias que os antigos povos transmitiam aos mais novos seus costumes, seus valores, suas lições. Esse jeito prazeroso de ensinar era capaz de fazer da menor semente de reflexão um pensamento para levar para a vida toda. Se as histórias têm então esse poder transformador, por que não usá-las com essa finalidade? Foi isso que a Red Internacional de Cuentacuentos (RIC), uma rede internacional de contadores de histórias, pensou ao instituir o dia 21 de junho como o Dia Mundial de se Contar Histórias para Mudar o Mundo. Isso foi em 2010 durante um encontro em Ouro Preto.

Desde então, inspirados contadores, associados ou não a essa rede, põem-se a contar contos para chamar atenção de quem para para ouvir ou passa por aí distraído. Representante da RIC na região, o pesquisador da tradição oral e contador de histórias, Zé Bocca, de Votorantim, promoveu, a exemplo do que seria feito em várias partes do mundo, uma intervenção: acompanhado de Maurício Toco, pesquisador de música de raiz, ele contou histórias na Biblioteca Municipal e no Terminal Urbano de Votorantim na última quinta-feira, dia 21 de junho.
A ideia, diz Bocca, é agir, através da palavra falada ou da escrita, em favor de quem sofre alguma forma de discriminação e combater as violações dos direitos humanos, a marginalização, o preconceito. "São realizadas, durante todo o dia, intervenções locais onde haja um coordenador e membro ativo da Rede Internacional de Contadores de Histórias." Em 2011, houve a participação de 30 países dos quatro continentes, com 180 atividades. No última dia 21, estavam previstas ações em países como Espanha, Índia, Alemanha, Irlanda, Argentina, Venezuela, México, Colômbia, Cuba e Costa Rica, entre outros (algumas atividades estão no site www.historiasparacambiarelmundo.com). A atividade em Votorantim foi resultado de uma numa parceria entre a RIC, Instituto Conta Brasil e a Secretaria de Cultura.
A intervenção no terminal não foi uma novidade para o contador de histórias, mas para Toco, responsável pela música e pelos efeitos sonoros durante as atraentes apresentações, foi a primeira vez que viveu essa experiência. Os dois também fizeram sua arte em frente a uma escola, no horário de saída dos adolescentes e a reação desses foi o que deixou o músico mais surpreso. "Há muitas críticas a respeito dos jovens, mas eles se mostraram tão interessados. Eles nos rodearam e alguns continuaram nos seguindo", contou. "Penso que tanta tecnologia acabaria com essa sensibilidade nos jovens, mas talvez ela possa ser usada para revitalizar esse desejo. Acho que o acolhimento desses estudantes mostra que os jovens têm carência desse contato, de sentar ao redor de uma fogueira para ouvir histórias."
Contar histórias, mais que arte, era o registro simbólico de um povo e das mensagens que pretendiam guardar. Bocca cita Waldemar de Andrade (artista e pesquisador da cultura indígena, escritor do livro "Lendas e Mitos dos Índios Brasileiros", editado na Alemanha e no Japão) para dar a dimensão da importância de se contar histórias - Andrade ressaltava essa prática oral como um pilar da cultura indígena. Contar, ouvir, escrever e ler histórias, para Bocca, é uma necessidade ancestral que está apenas adormecida. "Não estamos falando de moral da história. História não precisa ter moral, já que esse é valor distinto para cada cultura. Você solta e ela vai bater num ouvido que já tem suas referências, seus repertórios de informações. Isso que é legal."
Curruira solta no terminal
Mais fácil atingir os objetivos de chamar atenção dos ouvintes quando se está na biblioteca, onde as pessoas já estão predispostas a ver o que os artistas têm a dizer. Num terminal de ônibus, o desafio é outro. Erguer o tom de voz, numa disputa respeitosa com barulho de gente, ônibus e televisor da lanchonete, para começar, do nada, a contar a história não é uma tarefa tão fácil assim. Alguns ignoram, outros olham desconfiados, há os que disfarçadamente fogem. "Resistência", diz Bocca sobre o que é preciso para contar histórias para a multidão quando se tem a intenção de fazer um mundo melhor. Em outras palavras, bem lembrou Toco, precisa ter "cara-de-pau", adquirida às custas de muitos trabalho na rua, combinado com a profissão que cada um exerce. "Tem comer muita poeira. Dom? Respondo que contar histórias é 10% de inspiração e 90% de transpiração", Bocca reforça.
Em meios aos que aguardavam o transporte, àqueles que queriam embarcar na sua viagem, Bocca e Toco ofereciam a história "Ah, Curruira, se eu pudesse...", numa versão resumida. "Num lugar como esse não pode ser nada demorado", explicou, "nada que passe de três minutinhos". Algumas ignoravam a presença dos artistas, outros olhavam desconfiados, uns até fugiam. "Às vezes, a gente acha que a pessoa não está dando bola, mas tem gente que depois vem atrás, comenta que achou legal. Muitas vezes as pessoa não tem tempo mesmo para ouvir", observou Toco. Eliana Ledesma de Moraes, 46, saiu do balcão da lanchonete onde trabalha para chegar mais perto dos artistas e ouvir atentamente o que os dois homens contavam. "Achei diferente alguém vir contar história aqui. Isso me chamou atenção e eu gostei. Para essas coisas não tem idade." Para o senhor Takife Cunaccia, advogado que se deu ao direito de parar alguns minutos e saber o que acontecia com a curruira, o ato inusitado de encontrar contadores de histórias num terminal de ônibus foi simplesmente espetacular. "O mundo precisa de contadores de histórias", disse sorrindo.
Determinação
Se você, leitor, chegou até aqui, talvez queria saber o que se passa com a tal Curruira. Contou Bocca que, um dia, um lenhador foi cortar a árvore mais alta de uma floresta, onde morava uma pequenina Curruira. Implorando ao lenhador que não cortasse a árvore onde fizera sua morada, ouviu do homem: "Ah, Curruira, se eu pudesse...apenas cumpro ordens do Barão!". Implorando ao Barão que ele mantivesse sua linda casinha, ouviu dele: "Ah, Curruira, se eu pudesse...apenas cumpro ordens do Rei!". Tomada de coragem e determinação, a pequena Curruira foi ter com o poderoso Rei. "Rei, você não pode cortar a árvore onde fiz minha doce morada". Muito bravo, o Rei disse à Curruira que primeiramente ela deveria chamá-lo de "Sua Majestade", mais enfezado ainda, ele disse à avezinha que precisava de lenha para a lareira que o mantinha aquecido dentro do castelo onde morava. Muito brava e sem ter mais como argumentar, a Curruira disse que chamaria "todo mundo" para tentar uma solução. "Todo mundo??", indagou o Rei. "De "todo mundo" eu tenho meeeeedo!". O Rei então cedeu ao apelo da Curruira, que vive até hoje na árvore mais alta da floresta. "Não viveu feliz a vida inteira porque felicidade não é para sempre", finalizou Bocca.

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