Notícia publicada na edição de 31/08/13 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 3 do caderno C
Coletivo Cê inicia a temporada do espetáculo 'Desmedida'. Encenação ocorre nas ruas e público é convidado a percorrer o local com os atores
Coletivo
Cê inicia a temporada do espetáculo ¿Desmedida¿. Encenação ocorre nas
ruas e público é convidado a percorrer o local com os atores -
Divulgação/Tatiana Plens
Gelsomino Veneto é um senhor das antigas,
um tanto carrancudo e grosseiro. É ele o encarregado de agendar e
orientar o público na temporada de Desmedida, novo espetáculo do
Coletivo Cê. É em sua página do facebook que o público deve entrar para
se inscrever e garantir um lugar na plateia, limitada a 40 pessoas por
sessão. Pessoa nada amigável esse tal de Gelsomino. Mas não liga, não.
Vale a pena entrar nessa brincadeira. Afinal, ele é personagem criado
pelos integrantes do Coletivo Cê para mostrar o quanto eles ousam em
suas tentativas de aproximar público e personagem com o intuito de
confundir e brincar com o que é verdade e o que é ficção. Brincadeira
ousada, grandiosa e arriscada essa dos integrantes do Coletivo Cê.
Desmedida é um espetáculo que reúne 25 profissionais em cena, entre
atores, músicos e grupo de apoio, num cenário nada tradicional e nem um
pouco passivo. Os atores interpretam ao ar livre, no próprio bairro da
Chave, correndo o risco das interferências mais variáveis que podem
ocorrer num palco como esse. A ousadia vai além. Com cerca de duas horas
e meia de duração, a montagem começa na linha de trem que passa no
bairro e percorre um itinerário de cerca de um quilômetro pelas ruas e
casas do lugar. É praticamente uma loucura, definem o diretor da peça,
Júlio Mello, e a atriz Mariana Rossi, que às vésperas da estreia desse
novo espetáculo do coletivo deram uma entrevista ao Mais Cruzeiro.
Novamente apostando no teatro como arte-comunicação relacionado ao
espaço em que seus atores ocupam - como já tinham feito no espetáculo
Desterro -, os artistas do Cê desenharam o projeto Botu-ra-ti -
Resgatando a Memória e a Cultura do Povo Votorantinense. Esse projeto
nasceu com o objetivo de descobrir o lugar que passaram a ocupar há
algum tempo e devolver à própria comunidade essas descobertas. Desmedida
é o resultado dessa pesquisa e que foi possível porque o Botu-ra-ti
(que quer dizer cachoeira) foi também contemplado com R$ 150 mil pelo
Programa de Ação Cultural (Proac) 2012, que previa a realização de um
espetáculo inédito.
"Queríamos construir uma relação com a
comunidade e começamos a ver a possibilidade de desenvolver algo maior",
conta Júlio. "O prédio que ocupamos é da extinta associação amigos de
bairro e estava abandonado quando chegamos aqui, servindo de ponto para
usuários de droga." A antiga instituição então cedeu o espaço pra eles e
por eles foi transformada. Foi então um processo natural pensar um
espetáculo que resgatasse a história do bairro da Chave e a memória dos
moradores do lugar. A participação da comunidade nessa empreitada também
era desejo dos integrantes do Cê e para o prazer deles assim aconteceu.
Embora muitos até hoje sejam resistentes em participar de algumas ações
propostas pelo coletivo, a maior parte dos moradores apresentou fotos,
contou fatos e respondeu aquilo que os artistas queriam saber: quais os
momentos mais marcantes para os moradores do bairro? Os mais felizes?
Quais os mais alegres? Quais são suas histórias?
No entorno da história
O bairro da Chave surgiu por conta da industrialização na região que
aconteceu no final do século 19 e início do século 20, justamente por
conta da cachoeira. As casas dos bairro foram feitas para os operários
morarem, mediante aluguel descontado do salário deles. "Conversando com
as pessoas, descobrimos um olhar bastante romântico em relação ao
passado e que permanece até hoje. Achamos tudo muito perfeito e
precisávamos de um contraponto. Até que descobrimos um livro de Isabel
Cristina Dessotti (professora e mestre em Educação), filha de uma
operária da fábrica que resgata sua história com uma visão mais realista
sobre as dificuldades enfrentadas naqueles tempos", conta Júlio sobre a
publicação História da educação de Votorantim - Do apito da fábrica à
sineta da escola. Jornais da época, como O Operário, Jornal 15 de
Novembro e edições passadas do jornal Cruzeiro do Sul também serviram de
fonte de pesquisa.
O ponto de partida para montar o espetáculo
foi a pergunta "quem conta nossa história?". "Percebemos que a história
toda não tratava apenas da vida dos operários, mas dessa desmedida
social que faz chegar ao que se tem hoje, que incidiu na forma como a
vila de operários foi se transformando, sem um planejamento específico,
mas ainda com relações muito estreitas entre os moradores. Aliás, isso é
algo que permaneceu no tempo. As casas são muito próximas, geminadas,
as pessoas são muito próximas das outras e parecem ter um funcionamento
próprio também", observa Júlio. Para Mariana, apesar das peculiaridades,
aconteceu com o bairro da Chave o que acontece com qualquer comunidade
que passa por um processo de industrialização. "Parte da fábrica do
Grupo Votorantim saiu do bairro, mas a maioria dos operários ficaram,
fizeram financiamento para comprar as casas nas quais há anos moravam."
Pesquisa e pergunta feitas, o espetáculo teatral foi elaborado.
Desmedida tem dramaturgia compartilhada, ou seja, todo os integrantes do
Coletivo Cê participaram da criação, dos textos e da produção. E mais
uma vez, de uma forma interessante, os moradores fazem parte da
montagem. Não como figurantes ou atores, mas colaboradores. Muitos deles
aceitaram que suas casas sirvam de cenário ao longo da encenação. De
algumas casas das ruas da Chave, surgem os atores no decorrer das cenas.
Mariana acha interessante a forma como tudo se dá. "Eu tenho poucos
minutos para trocar de roupa e entrar em cena novamente quando entro
numa das casas e é até engraçado porque enquanto estou em trocando, a
dona da casa fica conversando comigo como se eu fosse da casa, fizesse
parte dela. De certa forma, já estamos inseridos no bairro, na vida dos
moradores, mas ao mesmo tempo não interferimos na vida deles."
Montagem viva
O espetáculo narra, na forma de alegorias e mesclando figuras do
passado e presente, a formação de uma sociedade em dois atos. O primeiro
ato começa com a chegada dos imigrantes e conta a história até o ano de
1982, quando uma enchente atingiu o bairro, levando vidas e memórias
dos moradores. "Foi um dos fatos mais marcantes e mais tristes da Chave.
Pessoas morreram, pessoas perderam coisas importantes de suas vidas",
diz Júlio. No segundo ato, é retratada a saída da fábrica Votorantim do
bairro e as mudanças que ocorreram até o momento atual, com recortes da
comunidade. Trabalhar a identidade daquela comunidade, semelhante a
outras tantas - quantos bairros não surgiram ao redor das grandes
indústrias do passado? - foi uma das intenções do grupo, mas outro
grande objetivo foi o de provocar reflexões. Não há respostas prontas,
mas sim muitas perguntas.
O foco da montagem não são os atores,
mas as histórias em si. O público participa não como agente passivo,
mas como personagem. "O público são os imigrantes que chegam à
hospedaria, como era feito antigamente", adianta Júlio. As
interpretações e os jogos de cena podem ter variáveis conforme a reação
do público. Não se pode dizer, no entanto, que Desmedida é um espetáculo
de improviso, mas os atores em cena devem estar preparados para
improvisar. "Pode ter um carro passando no meio da cena, alguém soltando
uma bombinha perto da gente. Estamos na rua e sujeitos a tudo", brinca
Mariana, "mas a gente não pode ignorar isso, tem que incorporar às
cenas". O que eles já sabem é que as possibilidades e as incertezas
triplicam o frio na barriga de cada ator e fará de Desmedida, para eles,
uma nova estreia em cada apresentação.
Mariana e Júlio, em
nomes dos demais parceiros do Coletivo Cê, já garantem que a empreitada
foi gratificante. "É um trabalho vivo desde o começo, já está
acontecendo faz tempo, muito antes da estreia", diz Mariana. "Todo mundo
guarda uma bela história e foi muito bacana conhecer as histórias das
pessoas do local onde a gente está instalado." Júlio confirma o prazer
de fazer Desmedida, apesar das dificuldades."A gente achava que R$ 150
mil era muito, mas ao longo da produção a gente viu que teve que se
virar pra dar certo", disse ele, com a barba pintada de amarelo,
resultado de um serviço de pintura que ele mesmo fazia na fachada da
sede do coletivo na quinta-feira. Pra se ter uma ideia da ousadia do
grupo, a locomotiva cenográfica, feita de plástico e espuma vai
percorrer, de fato, a linha do trem. Entre as tarefas mais difíceis,
ressalta o ator, foi ter que abrir mão de tantas informações e histórias
do bairro. Se deixasse todas, o espetáculo teria umas cinco horas de
duração, ele garante.
Quanto vale?
Em Desmedida, o Cê repete uma proposta já feita em Desterro, o "Pague
Quanto Puder". Logo na entrada, o público é convidado a contribuir com o
valor que achar que a peça merece, ou que pode dar, ou mesmo o valor
que deseja dar. "É uma alternativa para provocar no público uma reflexão
sobre o valor da arte e dar a ele autonomia. É também uma ideia de
democratização. As pessoas não vão deixar de vir porque acham que não
podem pagar", emenda Júlio.
Vale reforçar aos interessados:
serão percorridos, ao longo do espetáculo, cerca de 1 quilômetro, com
alguns trechos levemente acidentados e escadas. Ou seja, é bom ter
certeza da força nas pernas para conseguir acompanhar toda a montagem.
Participam, a cada apresentação, 40 pessoas, por conta da dinâmica da
peça, que devem se inscrever previamente pela página no facebook do
mal-humorado Gelsomino Veneto, o homem que recebe os imigrantes na
hospedagem, ou pelo site do coletivo: www.coletivoce.com.
Integram o Coletivo Cê dezenove artistas/cidadãos de diversas áreas.
Participam do espetáculo como atores-criadores Daiana de Moura, Daiane
Rodrigues, Eliane Ribeiro, Eliza Santana, Fernanda Brito, Francis
Zagnen, Giuliana Bona, Gladson Flebertty, Hércules Soares, Lélis
Andrade, Rafael Bricoli, Rômulo Guerra, além de Júlio Mello e Mariana
Rossi. A assistente de direção é Melany Kern.
Serviço
Espetáculo Desmedida, do Coletivo Cê
De hoje a 20 de outubro, aos sábados e domingos, às 17h
De 26 de outubro a 1 de dezembro, aos sábados e domingos, às 18h - por conta do horário de verão
Agendamento com Gelsomino Veneto (www.facebook.com/gelsomino.veneto)
Mais informações: www.coletivoce.com.
Entrada: Pague quanto puder
Em caso de chuva, não haverá apresentação

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