domingo, 6 de abril de 2014

QUILOMBO OS CAMARGO: APAGÃO HISTÓRICO

Jornal Cruzeiro do Sul
Daniela Jacinto
 
 Estado de São Paulo tem apenas seis comunidades quilombolas tituladas 

 Na região de Sorocaba, nenhuma conseguiu ainda a titulação, nem mesmo o Cafundó, que já tem o reconhecimento
 
João Fernandes, da comunidade Os Camargo - Aldo V. Silva
 
Dados da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) divulgam que o Estado possui 79 comunidades apontadas como remanescentes de quilombos, incluindo as relacionadas pela Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), entidade ligada à diocese de Eldorado. No entanto, até o momento 28 foram reconhecidas como remanescentes e apenas seis estão tituladas. Desde 2007, há sete anos, a situação permanece a mesma. Na região de Sorocaba, nenhuma das sete comunidades conseguiu a titulação ainda. A que está em processo mais avançado é a do Cafundó, em Salto de Pirapora, que obteve o reconhecimento, porém a titulação ainda não saiu. A titulação garante a propriedade das terras, o acesso às políticas públicas e demais direitos.

Em Sorocaba e Votorantim, a família do escravo alforriado José Joaquim de Camargo, do quilombo Os Camargo, já teve iniciado o relatório antropológico e o levantamento para fazer as planta do território, mas a falta de recursos financeiros e de pessoal tem causado a demora, conforme informou a antropóloga Paula Elaine Covo, analista em reforma e desenvolvimento agrário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na semana passada.

A família Os Camargo reivindica a propriedade de parte de terras em Sorocaba, Votorantim, Salto de Pirapora, Piedade, Sarapuí e Araçoiaba da Serra, num total de 84 mil alqueires de extensão. Os descendentes possuem uma escritura datada de 2 de novembro de 1874 comprovando que o escravo alforriado José Joaquim de Camargo comprou aquelas terras do capitão Jesuíno de Cerqueira Cezar ao preço de 400 mil réis. A escritura descreve a área adquirida, porém o faz por córregos e cachoeiras.

As lutas pelas terras são feitas de forma organizada e as responsabilidades divididas em três associações: a de Votorantim, Sorocaba e Salto de Pirapora. Eles sabem que a maioria das terras hoje estão ocupadas e que será impossível reavê-las, mas querem o reconhecimento histórico e as respectivas indenizações.

Os Camargo estão enfrentando a mesma dificuldade das outras comunidades: a morosidade do processo. Eles contam que primeiro a documentação ficou parada durante oito anos no Itesp. Quando o governo passou a responsabilidade pelo processo de reconhecimento das comunidades quilombolas para o Incra, em 2003, Os Camargo esperavam ter o problema solucionado de forma mais rápida, no entanto ainda aguardam a regularização de sua situação. No quadro que mostra as comunidades tituladas, as seis titulações têm como órgão expedidor o Itesp. Apenas uma titulação no Estado de São Paulo foi expedida pelo Incra, é aliás uma segunda titulação, ou seja, o processo todo já estava pronto.

Região sudeste está esquecida

As comunidades quilombolas reclamam que São Paulo é o Estado com menor número de titulações, com processos parados há anos. Para eles, a região sudeste está esquecida. Esse desabafo foi feito durante uma reunião realizada na terça-feira passada, dia 1º de abril, na sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e que contou com a presença de membros do Incra, da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), da Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq), representantes do Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, da Subcomissão de Quilombos do Estado de São Paulo, vinculada à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado, e principalmente da procuradora regional da república Maria Luiza Grabner.

Edson Correa e João Fernandes, da comunidade Os Camargo, participaram da reunião e contam que gostaram muito de ouvir o depoimento da procuradora, que acompanha a luta quilombola há mais de dez anos. "Ela disse que via com muita apreensão as mesas que estão sendo montadas para discutir as questões dos quilombos porque temia que acontecesse aqui o mesmo que presenciou em Brasília", disse João.

Em uma visita a Brasília, a procuradora se surpreendeu ao encontrar processos parados, fazendo um caminho burocrático que não estava seguindo as normas do Incra, mas sim rodando em outras mesas. "A procuradora disse que estava acompanhando essas questões em nível nacional e que ao ver o que estava acontecendo em Brasília, o Ministério Público entrou com ações para agilizar documentos do Incra que estavam parados", afirma João.

Edson, que também estava presente, lembra que a procuradora chegou a citar que a verba do Incra está diminuindo ano a ano porque como o serviço está parado, para o governo isso mostraria que não tem demanda, então consequentemente não está precisando de verba. "Ela também disse que enquanto isso essas pessoas estão precisando de escola, saúde, e então a procuradora sugeriu ao Incra que o órgão teria de defender a posse quilombola antes de sair o RTID [Relatório Técnico de Identificação e Delimitação] pra gente já ir conseguindo esses direitos".

Apesar da demora nos processos quilombolas em todo o Brasil, a procuradora disse durante a reunião que reconhece que em São Paulo a situação está mais morosa. "A doutora Maria Luiza disse que o Incra está resolvendo as questões mais fáceis primeiro. Ela disse que como o órgão é cobrado e precisa dar uma resposta, eles vão titulando as áreas mais fáceis e deixando as outras para trás", complementa Edson.

A procuradora, ainda segundo Edson, deixou bem claro a todos os que estavam presentes que essa seria uma "visão dantesca de uma política que está afundando" e que não está sendo feito nada para poder resgatá-la. "Nós sentimos que ela está com a gente. Ela ainda questionou a mesa de debates, perguntou se essa mesa regional iria andar, sendo que nacionalmente as coisas não estão funcionando".

Edson e João recordam terem ouvido a procuradora falar que o quilombo do Carmo, em São Roque seria uma das prioridades e que ela iria acompanhar. "Ela ainda se colocou à disposição pra ajudar o Incra", disseram, esperançosos em também ter sua situação resolvida.
A reportagem tentou entrevista com a procuradora, mas conforme sua assessoria, Maria Luiza estava em reunião.

Capitão do mato é visto até hoje

Gisele Navarro, 38 anos, conta que já viu o capitão do mato - Aldo V. Silva

Quem mora no bairro Cubatão, em Votorantim, está acostumado a ouvir relatos dos vizinhos sobre um homem de capa preta que é visto rondando a região durante a noite. Dizem que é a alma do capitão do mato, que vaga até hoje por conta dos maus tratos aos negros. Mesmo quem mora no bairro há menos tempo que os mais antigos, já presenciou algo que pode ser considerado uma situação um tanto quanto inusitada. Gisele Navarro, 38 anos, conta que mora há 5 anos no local e que duvidada das histórias que ouvia. "Um vizinho, de idade avançada, costumava dizer que sempre via o homem com chapelão e capa preta sentado na esquina. E dizia que aquele era o capitão do mato. Um dia, meu cachorro estava latindo muito e achei estranho porque não tinha ninguém, quando me aproximei vi um homem alto, com chapéu largo e capa preta, que ficava ainda abrindo os braços e balançando a capa como se provocasse o cachorro", relata.

Ali no bairro os moradores ainda ouvem o choro de uma mulher e de uma criança, acompanhado de uma canção de ninar, mas sobre isso eles não têm nenhuma referência, não sabem dizer se seria uma escrava, sinhá ou camponesa. O que os moradores sabem é que a igreja da Comunidade Sagrado Coração de Jesus foi construída por mão de obra escrava e que atrás da igreja era cemitério. "Os meus vizinhos também dizem que ouvem até hoje o sino da igreja tocar, mesmo após ter sido roubado há muito tempo. O sino eu não escuto", diz Gisele, que mora em frente à pequena igreja.

 

 ROTA DOS NEGROS -Túnel da Chácara dos Padres era usado para fuga
 
 
 Edson Correa, mostra onde estava o túnel - Aldo V. Silva
 
Um túnel em Votorantim foi muito usado pelos negros fugitivos para não serem capturados pelo capitão do mato. Esse túnel ficava na Chácara dos Padres, onde hoje resta apenas o terreno ao lado do shopping Panorâmico. Edson Correa, tataraneto do escravo José Joaquim de Camargo, sabe de diversos relatos contados por seus parentes sobre esse lugar. O principal é que os escravos fugiam e iam procurar a ajuda dos padres, que os abrigavam lá.

Naquela chácara os negros permaneciam e ajudavam os religiosos na limpeza e serviços gerais. Como o local é alto e dali era possível enxergar toda a cidade, os padres avisavam os negros fugitivos quando o capitão do mato estava a caminho. "E então eles corriam para o túnel, que tinha saída para o rio, próximo à cachoeira dos Guimarães. Infelizmente foi tudo demolido e o túnel aterrado. Até há pouco tempo ainda dava para ver as ruínas, mas agora com essa plantação de milho ficou impossível", lamenta Edson. Logo mais à frente, próximo à Praça de Eventos de Votorantim, era o "cangume", um local onde os escravos realizavam a festa da colheita. Já o local onde hoje é o pátio da Prefeitura de Votorantim era uma senzala. "Hoje não há nem vestígios", diz Edson. 
 

De 31 de Março para José Joaquim de Camargo

Na segunda-feira passada, dia 31 de Março, dia em que se completaram os 50 anos do golpe militar, um grupo de estudantes encobriu o nome da principal avenida de Votorantim como forma de protesto contra o que consideram uma homenagem à data. Também os quilombolas são contra o nome da avenida e diante da proposta de mudança de nome, defendem que seja dado o de José Joaquim de Camargo, que seria proprietário da maior parte das terras do município. A solicitação foi protocolada na Câmara de Votorantim na semana passada. 
 
 

Das mulheres negras tiraram até o leite

A mulher africana era considerada uma mercadoria - Divulgação/Gabinete de Leitura Sorocabano

Destemidas e consideradas audaciosas, conforme registrado no livro "Mulheres Negras do Brasil", de autoria de Schuma Schumaher e Érico Vital Brasil, as africanas aparecem nos registros de levantes em navios. Em um desses momentos, em 1702, homens e mulheres cativos apoderaram-se de armas e lançaram-se sobre a tripulação. Depois de meia hora, dois mortos e outros feridos, os rebelados foram controlados. No dia seguinte, foram enforcados e ficaram pendurados no mastro. Durante a travessia, muitas negras se atiravam no mar, temendo o mal maior que as esperava.

Chegando aqui no Brasil, elas tiveram de se submeter aos mais variados tipos de serviços, começando pelos domésticos até a lavoura e a extração mineral, no caso daquelas que vieram para a região sudeste. Em todos os cantos do país, elas foram obrigadas a dormir com outros escravos, com a finalidade de reprodução, a satisfazer os desejos sexuais de seus patrões, e ainda tinham de amamentar os filhos das sinhás.

Apartadas de seus parentes, de seus amores, de seus filhos, eram tratadas como coisa. Os anúncios publicados em jornais da época mostram como eram vistas essas mulheres: "Vende-se por preço commodo uma preta sadia e moça, com muito e bom leite, com uma filha parda de 3 annos, muito bonita, tendo perdido há pouco um filho de 10 dias; trata-se na rua da Pedreira da Glória, 39". Em outro anúncio, o negócio rendia até mesmo aluguel: "Aluga-se uma de côr parda-livre com cria de um mez, e affiança-se a boa qualidade do leite. Quem precisar dirija-se a esta typografhia". Em ambos os anúncios nota-se que a mulher africana era considerada uma mercadoria, que podia ser vendida ou mesmo alugada. Atenção para o termo empregado no segundo anúncio, que se refere ao filho como "cria".

Guerreiras

Em meados do século 16 até a década de 1850 foram traficados para o Brasil em torno de 4 milhões de pessoas, entre congos, angolas, benguelas, caçanges, minas e outros, dos mais diversos povos e grupos étnicos que habitavam as vilas, cidades e regiões do continente africano, cita o livro "Mulheres Negras do Brasil", que faz parte do acervo do Gabinete de Leitura Sorocabano. "A estratégia era trazer negros de línguas diferentes, povos diferentes, para que não se comunicassem e não organizassem motins", completa João Fernandes, tataraneto do escravo alforriado José Joaquim de Camargo. "Daí que foi criada a cupópia, para que eles tivesem uma única língua e pudessem se comunicar", diz.

Entre os grupos escravizados, as mulheres correspondiam a 20% dos homens. Apesar dos maus tratos sofridos, não baixaram suas cabeças. Muitas delas fugiram e foram líderes de quilombos. No livro consultado durante a pesquisa consta que foram encontrados alguns escritos sobre uma rainha, não se sabe se africana ou brasileira, de nome Teresa, que teria sido líder do quilombo de Quariterê, no Mato Grosso. Esse quilombo contava com parlamento e sistema de defesa com armas. A rainha tinha um conselheiro e a comunidade mantinha ali cultura de algodão e alimentos; como possuíam teares, também fabricavam tecidos.

 

Mesmo reconhecido, Cafundó tem muitas dificuldades

Neimar Lourenço Nascimento dos Santos, responsável pela Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq) e membro do quilombo Caçandoca, situado no litoral norte, próximo a Ubatuba, reclama da situação e lembra que nem mesmo no Cafundó, que já conseguiu o reconhecimento, está tudo resolvido. "A comunidade está parcialmente titulada", lamenta. Devido a esse fato, os moradores daquela localidade ainda sofrem com a falta de saneamento básico, escola e transporte, elenca Neimar. "Não chegou nada lá ainda. As políticas públicas do governo, do Brasil Quilombola, e a educação diferenciada pela Lei 10.639 não é aplicada, enfim, eles estão sem o básico para a dignidade do ser humano", diz.

Outro fato que dificulta o acesso aos direitos é que a maioria dos quilombolas não sabe como está a situação de sua comunidade. "É tudo muito obscuro, além disso nós também somos leigos no assunto. É difícil acompanhar esses trâmites jurídicos. Essa mesa de discussões é importante pois estaremos acompanhando tudo, com a presença do Ministério Público, com a ajuda de defensores públicos. Tem comunidades que tem advogados também", afirma.

Neimar explica que o principal para as comunidades é o reconhecimento. "Primeiro enfrentamos a demora no Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), depois outra etapa que leva anos é para que sejam publicadas as titulações. Só o RTID não titula o território".

Criada em 1996, após o primeiro encontro das comunidades quilombolas do Brasil, há 18 anos, a Conaq representa as comunidades em nível nacional. "A gente tem uma secretaria em Brasília e temos coordenadores executivos dentro das mesas permanentes de regularização fundiária", explica Neimar, que entre outras conquistas do Conaq cita a criação do primeiro Conselho de Educação Quilombola do país, instalado no Estado de São Paulo.

Neimar, que esteve presente na reunião, também espera que o que foi acordado durante o encontro seja realizado. Durante a reunião, o Incra se propôs a algumas soluções. Conforme João, foi falado que primeiro se não der para fazer o RTID inteiro, que seja feita uma parte. "O Incra também disse que está vendo a possibilidade de contratação, para aumentar a capacidade da equipe. Ainda será apresentada pra gente a tabela do último encaminhamento de cada comunidade. E da parte das comunidades nós iremos monitorar o dinheiro público", diz o quilombola.

Durante o encontro foi proposto a resolver a dificuldade da demarcação de territórios usando mapas. "Alguém disse que bastaria pegar o antigo e verificar diante do novo, mas o Incra respondeu que não é tão simples assim para reconstituir uma escritura antiga", disse João.
Essa é a segunda reunião da mesa de discussões aberta em São Paulo para falar a respeito da situação das comunidades quilombolas no Estado. Durante a reunião ficou acertado um próximo encontro para o dia 3 de junho, às 14h. Para essa reunião serão convidados os prefeitos das cidades envolvidas. "A mesa será bimestral, com a ideia de levar quatro comunidades, onde será discutida a sua situação judicial", comenta Neimar.

As metas são resolver as situações das comunidades Cangume (Vale do Ribeira), Pilar do Sul e Carmo (São Roque), até o final de 2014. Durante o encontro também ficou acertado que será feito um trabalho com Os Camargo também. O Incra ainda anunciou que para 2015 serão acertadas as situações de mais seis comunidades. Para que seja mais ágil, as questões de algumas comunidades serão resolvidas em parceria com o Itesp.

Desde o dia 16 de março, o jornal Cruzeiro do Sul tem publicado todos os domingos reportagem sobre o quilombo Os Camargo, como forma de mostrar um recorte da história dos negros e da situação dos quilombolas no Brasil. A série termina neste domingo.

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