domingo, 11 de maio de 2014

Dona Iolanda: A mulher que cura com abraços



Jornal Cruzeiro do Sul
Leila Gapy

 

Iolanda dedica-se há 18 anos às crianças sob a guarda da Justiça - Emídio Marques


Rente ao muro branco que contorna o número 300 da rua Dr. Alfredo Maia, em Votorantim, dá para ouví-la colocar ordem na criançada. "Sai daí, não sobe. Você vai cair!". A voz rouca, como das cantoras de blues norte-americanas, é de Maria Iolanda Américo Venceslau, de 57 anos, a mãe-social da Casa de Belém de Votorantim - um abrigo para crianças vítimas de maus-tratos que estão sob a guarda da Justiça. E as frases dela são quase sempre seguidas de gargalhadas. É que as crianças fazem estripulia e ela rende-se, acha graça. Quando o portão cinza se abre à visita, ela já está nas escadas do abrigo, esticando o pescoço, tentando enxergar o visitante.

Ali é possível ver que dona Iolanda é uma versão negra de Dona Benta - personagem de Monteiro Lobato. Com cerca de 1,60 metro de altura e alguns quilinhos a mais que o recomendado, ela tem as unhas um tanto compridas, com sobra de esmaltes nos cantos, que evidenciam restos da vaidade escondida por baixo do vestuário prático e padrão: calças jeans, tênis surrado, camiseta e jaleco azul. Os braços de fora mostram a frequência na cozinha, com marcas de queimaduras de quem vai muito ao forno e queima-se ao retirar a assadeira. Mas não demora muito para ela abrir o sorriso de "Seja bem-vindo!", distribuído a todos, da mesma forma, com abraços apertados que contornam o corpo e aconchegam a cabeça.

Ritual carinhoso


Ela sabe deixar qualquer um à vontade. Então, não tem como não aceitar e apertá-la também. Aliás, existe ali um ritual de repetição por cópia. Dona Iolanda abraça e, na sequência, as crianças abraçam também. Porém, esse esforço de dona Iolanda para deixar as crianças e os visitantes à vontade tem um motivo. Os abrigos - antes chamados de orfanatos -, carregam estigmas de tristeza e abandono. Ainda hoje espantam muita gente, às vezes, antes mesmo de chegarem lá. Mas ela acredita que o local é transitório e que deve favorecer para que as crianças, apesar dos problemas sérios, sejam felizes.

Para isso, ensina que todos são irmãos e devem se tratar com carinho, com abraços, além de exercitarem as cinco expressões mágicas: seja bem-vindo, por favor, obrigado, com licença e desculpe-me. Apesar disso, as crianças não param quietas e volta e meia se queixam da disciplina. Mas o respeito e carinho saltam aos olhos. Vira e mexe os pequenos estão empoleirados nela para abraçá-la. Para conversar é preciso segui-la casa adentro, disposta em mil metros quadrados de terreno, com quatro quartos, sala, cozinha, refeitório, play e uma capela, em louvor a São Judas Tadeu. É por ali que ela ora está trocando fraldas, ora correndo atrás da refeição do dia.

É que a mãe-social é quase onipresente. O lar tem cinco funcionários, como faxineira e a moça que passa a noite com os pequenos. Mas dona Iolanda acumula as funções de administradora, coordenadora pedagógica e mãe-social. Quando alguém falta, ela cobre. E enquanto trabalha, administra a própria casa, ali perto, por telefone. Mas essa dedicação, quase integral, só foi possível devido o apoio que ela tem da família. Iolanda é casada há 32 anos com José Carlos Venceslau, de 57 anos. Um negrão alto e forte; considerado por ela como seu braço direito. Juntos tiveram quatro filhos - Wagner, Carla (já falecida), Natália e Liliam, todos adultos -, que foram criados junto às crianças abrigadas.

Dona Iolanda é paranaense, mudou-se para Votorantim há 18 anos, quando o marido, desempregado, arranjou emprego. Necessitada e com filhos para criar, encontrou trabalho no abrigo. A entidade estava sendo criada, em 1996, por força do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - instituído seis anos antes por lei federal e que determina aos municípios a obrigação de cuidar de crianças sob a guarda da Justiça. E se Votorantim, que tem hoje 50 anos e 140 mil habitantes, ainda é considerada uma cidade pequena, naquela época era menor ainda. Até por isso a criação do abrigo demorou seis anos após a exigência legal. Naquele tempo, a situação das crianças, da cidade e da sociedade era diferente.

Acolhimento

Antes, conselheiros tutelares como o ex-prefeito Carlos Augusto Pivetta eram acionados em casos de maus-tratos, a maioria por abandono ou pobreza, e levavam as crianças para a própria casa, até que a Justiça determinasse o destino delas. E se hoje em dia, nem Justiça nem Prefeitura exigem que as mães-sociais sejam capacitadas - apesar da explícita necessidade -, naquela época o currículo de dona Iolanda era o melhor (e ainda é). As únicas experiências que ela tinha eram a de mãe e de a cozinheira numa creche do Paraná.

Para trabalhar no abrigo, o novo emprego, sem ter com quem deixar os filhos, levava-os consigo. Essa dedicação ao ofício já incomodou a família. Por vezes os filhos pediram mais atenção, folga, férias - pouco gozadas. Ela chora quando lembra-se disso. Culpa-se. Mas tem justificativa. "Pensava comigo que os meus tinham uma família, eu e meu marido. Enquanto as crianças daqui do abrigo não tinham ninguém".

Por essas e outras o marido rendeu-se à causa. Carinhoso e brincalhão, ele a ajuda no possível, sempre driblando o tempo entre a casa e o trabalho. Tanto que o lar da família é uma extensão da Casa de Belém, principalmente nos finais de semana, quando ex-abrigados, já adultos, aparecem por lá. Frutos que ela ostenta com orgulho de mãe. Mãe de todos.

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