Época
por Victor Calcagno, de Votorantim, São Paulo, e Volta Redonda, Rio de Janeiro
Com 4,7 bilhões de visualizações no youtube, ela faz uma multidão entoar junto canções sobre fossa, traições e porres
A cantora faz uma oração antes de entrar no palco: cena se repete nos cerca de 20 shows que faz por mês - Pedro Farina
À multidão, a cantora fez três pedidos: não pode chorar, não pode vomitar e nem ligar para ex - Pedro Farina
Passavam das 23 horas em Votorantim, interior de São Paulo, PUBLICIDADE
quando a artista musical mais ouvida do país chegou ao ponto
alto de seu show. Em frente a 10 mil pessoas, as luzes do palco
apagaram, um globo espelhado foi posicionado e um piano de
cauda começou a ressoar os primeiros acordes em tom de
tristeza. A toada lenta e o ambiente sombrio ganharam vida
quando uma voz forte e grave rompeu a pausa projetada pelo
instrumento: “Exagerado, sim”, disse o primeiro verso,
enquanto centenas de luzes refletidas pela esfera de vidro
iluminaram a estrela da apresentação. A canção seguiu num crescendo
ritmado até que explodiu no refrão, quando todas as desilusões
amorosas do público pareceram se unir em uma só voz: Não finja que
eu não tô falando com você/Eu tô parado no meio da rua/Eu tô
entrando no meio dos carros/Sem você a vida não continua, gritou a
cantora. Se ao fim da música a sertaneja Marília Mendonça precipitou
centenas ao choro e a lembranças irracionais de ex-parceiros, é porque
entregou o que pagaram para ouvir e fez jus ao epíteto que ganhou
após o sucesso: Rainha da Sofrência.
Depois de “De quem é a culpa?”, a cantora tentou levantar o ânimo do
público. “Ninguém aguenta tanta sofrência!”, brincou ela, após entoar
covers de Anitta e Pabllo Vittar. O estrago, no entanto, já havia sido
feito. Muito antes dos acordes de piano no fim da apresentação, o
público foi exposto a dezenas de situações musicadas em que histórias
de traição, saudade e términos conturbados ditam as composições que
lhe renderam 4,7 bilhões de visualizações no YouTube, maior marca do
país. Com apenas 22 anos e menos de três de carreira como cantora,
ninguém naquela noite de junho queria ouvir algo diferente das
lamentações de Marília Mendonça, ainda que ela ameaçasse, algumas
vezes, parar de “fazer a plateia sofrer”. “NÃO!”, respondia a legião com
um grito único, expressando um incauto desejo pelo sofrimento. Por
mais que a cantora houvesse imposto três regras ao começo da
apresentação — “não pode chorar, não pode vomitar e não pode ligar
para o ex” —, não é de estranhar que, a cada sucesso, todas elas tenham
sido infringidas dezenas de vezes, talvez simultaneamente, por uma
série de motivos pessoais e algum exagero alcoólico. Além do show em
Votorantim, as outras apresentações acompanhadas por ÉPOCA no Rio
de Janeiro e em Volta Redonda, interior fluminense, seguem a mesma
receita de sucesso, que rende quantias em torno dos R$ 300 mil por
noite, fora os gastos com transporte e alimentação, geralmente
bancados pela produção do evento.
Marília Dias Mendonça é uma jovem adulta de cabelos louros,
bochechas salientes, sorriso largo e voz grave. Quando apareceu para a
entrevista em uma saleta de hotel, já preparada para se apresentar dali
a pouco no interior paulista, de blusa, calças, sapatilhas e tailleur
pretos, a falta de pompa ao tratar os membros da equipe e a seriedade
do visual remetiam a uma cantora ainda indecisa sobre a imagem que
quer ter — se “brincalhona”, como sugerem suas contas nas redes
sociais, ou “madura e vivida”, como apontam suas composições.
Cercada de assessores e membros da produção, a primeira coisa que se
percebe é que a reeducação alimentar seguida pela cantora, que a fez
perder cerca de 15 quilos e rendeu críticas de fãs, de fato deu resultado.
Desde o começo marcada pela fuga dos padrões de beleza, Marília
Mendonça adotou um discurso de aceitação que foi posto em xeque por
alguns seguidores depois que surgiu mais magra no início de maio,
mudança anunciada em uma postagem curtida 870 mil vezes em seu
Instagram. “Eu estava com altos níveis de colesterol, triglicérides,
gordura no fígado e baixa imunidade”, disse ela. Reconheceu ter se
irritado com os boatos de que teria se submetido a uma cirurgia
bariátrica, além das acusações de ter se adequado aos padrões
estéticos. “Eu não teria defendido a aceitação do corpo desde o começo
só para ter feito isso agora”, declarou alguns minutos antes de seguir
em uma van até o local do show, escoltada por duas motos da polícia. A
saúde problemática era resultado da rotina exaustiva que levava, com
até 25 shows por mês. Hoje diminuiu a agenda para uma quantidade
entre 18 e 20 shows, o que assegura ao menos dois dias de folga na
semana, que costuma passar com a família em Goiânia.
Para atender à demanda de apresentações, a produção do show de
Marília envolve um jatinho particular, uma equipe com 37 pessoas —
todos homens, incluindo dois pilotos e três motoristas —, um ônibus e
uma carreta. De Votorantim, Marília seguiria nos dias imediatamente
posteriores para o rodeio de Americana, também interior paulista, e
depois para Manaus, onde um serviço de produção extra teve de ser
contratado. A assessoria da cantora não revelou, mas é provável que os
negócios ao redor de Marília, incluindo shows, direitos e parcerias,
tenham faturamento próximo dos R$ 10 milhões por mês.
Marília Mendonça costuma explicar o sucesso
pelo teor do que canta. Diz que a realidade —
nome, aliás, de seu segundo disco, cuja gravação
ao vivo reuniu 40 mil pessoas em Manaus —
presente nas letras tem grande responsabilidade.
Ainda que o título de Rainha da Sofrência seja
algo a que diz ter se acostumado, é impossível
desassociar o sofrimento da figura de Marília
quando afirma, poucos minutos antes de cantar
para a multidão em Votorantim, que, em seus
relacionamentos, “deu tudo errado, toda vez”. Em mais de uma
entrevista afirmou ter sido traída pela primeira vez em sua primeira
relação amorosa, aos 13 anos.
Natural de Cristianópolis, cidade a 90 quilômetros da capital goiana
onde foi “só para nascer”, em razão de ser a cidade onde trabalhava um
médico amigo do pai, Marília Mendonça seguiu com poucos dias de
vida para Goiânia, que concentra grande parte do mercado da música
sertaneja no país. Durante a pré-adolescência, Marília odiava o gênero,
preferindo canções de pop rock. Já cantando na igreja, rabiscou
algumas letras que ainda não evocavam o estilo musical que a faria
famosa. Quem a colocou no caminho da sofrência foi o cantor e
compositor Eduardo Marques, amigo mais velho com quem chegou a
formar a dupla Marília & Eduardo por menos de um ano, entre 2009 e
2010. O trabalho de convencê-la a adotar o estilo musical mais
consagrado na região, que Marques garantiu ter sido árduo, envolveu
uma praga. “Eu brincava, dizendo: ‘Marília, você só vai começar a
cantar sertanejo depois de levar um chifre’”, disse ele, que hoje
trabalha como pintor na Irlanda. A desilusão veio pouco tempo depois,
e a jovem, que já arranhava acordes no violão, começou a compor os
primeiros versos em ritmo sertanejo.
Faz quase 40 anos que a música sertaneja ganhou força de mercado no
Brasil, sempre com um repertório sofrido sobre paixões rasgadas. O
gênero atingiu maior alcance nacional nos anos 1990, mas artistas
como Michel Teló e a dupla Jorge & Mateus, garotos com pouco mais
de 20 anos que usavam referências jovens nas letras, fizeram-no
renascer no fim dos anos 2000. Se o chamado sertanejo universitário
está até hoje entre os gêneros mais ouvidos do país — dos cinco artistas
nacionais mais populares no Spotify em 2017, quatro, entre eles
Marília, representam esse estilo musical —, é fato que o ramo nunca
deu muito espaço para cantoras. Até que, no fim de 2015, Marília
Mendonça, então com 20 anos, gravou Marília Mendonça ao vivo,
marcando o início do subgênero que é a última novidade da música
sertaneja. Nele, mulheres tomam a palavra e contam sua versão das
histórias de amor — é o chamado feminejo.
Para uma plateia quase vazia, a apresentação inicial, gravada
modestamente em um estúdio paulista, já deixava claro a que vinha a
cantora. Das 17 músicas do disco, em 15 Marília cantava sobre ser
traída e expulsar o namorado de casa; sobre ser amante e ter ciúmes da
mulher do adúltero; sobre ligar para o porteiro e barrar a entrada do
ex-namorado no prédio; sobre receber mensagens do ex às 4h15 da
manhã e rejeitar a reconciliação; sobre querer saber se a parceira atual
do antigo namorado é tão boa quanto ela na cama; sobre ter uma
recaída e admitir que o casal só funciona “entre quatro paredes”; sobre
ter saudade do último amado e desejá-lo de volta sem sucesso; sobre
amaldiçoar, por fim, todos os seus relacionamentos anteriores e
futuros. Cada tema desses é uma música diferente, e às vezes o mesmo
assunto aparece em mais de uma canção.
Por mais que o sucesso do disco tenha vindo rapidamente, para
alcançá-lo foi necessária uma estratégia de lançamento diferente, que
envolveu investir primeiro no Nordeste brasileiro, onde a presença de
mulheres no forró, no brega e na axé music é mais comum. Marília
realizou várias apresentações nessa região até conseguir atingir os
bastiões mais tradicionais do gênero no país, como o Centro-Oeste.
Junto dela, outras sertanejas começaram a aparecer, várias mais
experientes, como as duplas Maiara & Maraisa e Simone & Simaria, as
últimas vindas do forró. A popularidade dessas artistas, maiores nomes
do feminejo no país, alavancou-se conjuntamente até estourar em
meados de 2016. Segundo a Playax, empresa que coleta dados do
mercado musical no país, os números de Marília em plataformas
digitais — como Spotify, Deezer e YouTube —, além de suas execuções
em rádios no país, de seu desempenho nas redes sociais e
do engajamento que consegue por meio delas, colocam a sertaneja hoje
em primeiro lugar entre os artistas mais populares do Brasil.
O grande sucesso do primeiro disco, que apresentou Marília Mendonça
para a maioria das pessoas, é “Infiel”, composto por ela. A letra, que
desafia o tal infiel a “morar no motel”, teve como inspiração uma tia
que viveu situação parecida em Goiás, mas, ao contrário da história da
música, não chegou a terminar o casamento após os flagras. A mãe de
Marília Mendonça, a dona de casa Ruth Dias, foi traída pelo padrasto
da cantora quando esta era adolescente.
Para esses exemplos, desde a falta de representatividade na música
sertaneja até a indignação com a sorte amorosa da tia e da mãe, Marília
Mendonça se inclinou na cadeira antes de dar uma resposta clara:
“Quis colocar em minhas músicas exemplos para que outras mulheres
seguissem. Por isso é que meu feminismo é um feminismo de atitudes”.
No fã-clube As Cariocas da Marília, todas as 13 integrantes são
mulheres. Às 10 horas de um domingo na Marina da Glória, centro do
Rio de Janeiro, quatro delas já estavam na fila de entrada de um show
que só começaria pouco depois das 21 horas, fechando o terceiro e
último dia do festival Sertanejo in Rio. Anne, Nayana, Ana Carolina e
Patrícia estavam uniformizadas com camisetas, bolsinhas, mochilas,
toalhas de rosto e outros apetrechos personalizados com o nome do
grupo, sem dar o mínimo sinal de cansaço. “A gente tá acostumada
com coisa muito pior”, disse Anne Monteiro. Com 37 anos e contando
com o emprego em uma importadora para bancar os ingressos, esse
seria seu 15º show, sem contar as oito gravações de programas de TV
em que também viu Marília.
As cariocas resolveram chegar cedo por um motivo claro: se Marília
não as enxergasse à beira do palco ao entrar cantando “Ei, saudade”, não valeria a pena ter gasto os R$ 200 do ingresso para a pista premium nem ter saído de casa. Estavam ali para ver sua “ídola”, é
claro, mas, após tantas apresentações e um nível tão alto de
envolvimento, estavam ali principalmente para ser vistas, torcer por
alguma menção durante o show e, ao fim, encontrá-la por alguns
segundos no camarim.
O fanatismo das quatro enfrentou um rol de provações. Para
estar ali, Nayana Cristina, pizzaiola de 24 anos no Méier e mãe
de dois filhos, chegou a ser demitida. Morena e baixinha,
desafiou a patroa quando se negou a trabalhar num domingo
para ir ao show. A ousadia foi suficiente para custar-lhe o
emprego, situação que acabou se revertendo após alguns dias
de reflexão da chefe. Ligando seus ombros pelas costas, uma
tatuagem exibe um dos versos de “De quem é a culpa?”: “É
tipo um vício que não tem mais cura”.
Ana Carolina, cuidadora de 30 anos em Niterói e mãe de dois filhos,
mostrava-se um tanto abalada naquela manhã. Depois de algum tempo
desempregada, finalmente conseguira serviço na semana anterior, mas
faltava ao primeiro plantão para ir ao show. A decisão fez o marido, pai
da filha de 13 anos, sair de casa em protesto e sem pistas de que
planejava voltar. Separada do amado, ela veria a apresentação em um
impasse com o atual parceiro, o que aumentava a carga emocional já
envolvida nas canções de temática parecida. Patrícia Alves, operadora
de telemarketing de 28 anos, fechava o quarteto dizendo já ter deixado
de pagar a escola do filho para comprar ingressos.
O motivo de tanto esforço e temeridade, todas disseram, estava nas
letras de Marília Mendonça, o que foi sintetizado por Ivone Silva,
presidente do fã-clube, que chegou mais tarde — tendo pago, sim, uma
colega para rendê-la no posto de cuidadora após o meio-dia: “Muitas
mulheres aceitam situações que não deviam, e ouvir Marília dá vontade
de não abaixar a cabeça. Já fui traída e sei exatamente do que ela está
falando”, disse a mãe de dois filhos que mora em Duque de Caxias, na
Baixada Fluminense.
Após o meio-dia, o marasmo da sesta só mudou quando surgiu um
homem de bandana, óculos escuros, bermuda cargo, pele queimada de
sol e uma camiseta com os dizeres “Fã-Clube Rainha da Sofrência”,
colocando no celular o último sucesso de Marília até então, a música
“Ausência”. As meninas ouviram e acompanharam a cantoria. Com 53
anos, Marcos Mendonça, sem relação de parentesco com Marília Mendonça, foi o primeiro fanático do sexo masculino a aparecer. Ao apontar para uma garrafa de 2 litros cheia com uma mistura de cachaça com catuaba e que bebericava de vez em quando, o homem corpulento afirmou, sem jamais tirar os óculos escuros: “A relação de Marília com o público é com a música e a cachaça”.
Fazendo referência a outra canção da sertaneja, Marcos, que trabalha
no ramo de construção de estruturas metálicas, definiu seu coração
como “mal-assombrado”. Segundo ele, a cantora foi a primeira mulher
de quem se tornou fã, porque representava as dores de amor, depois de
ter “traído muito” e acabar sozinho, sempre à procura de uma nova
parceira. Quando o assunto é representatividade, Marcos disse
acreditar que as músicas de Marília Mendonça são “para mulher, mas
atingem os homens” e que a sofrência é algo que gosta muito de sentir,
independentemente do sexo de quem canta. Seu sonho, disse, é tomar
“dois dedos de cachaça” com Marília, o suficiente, segundo ele, para
afogar as mágoas com a cantora que garante ser “boa de copo”.
Eduardo Marques, parceiro de Marília Mendonça na
antiga dupla Marília & Eduardo, disse estar
desapontado em relação ao que chama de
“ingratidão” da cantora, por jamais ter reconhecido
em público que ele a apresentou ao mundo do
sertanejo. Na época em que a conheceu, em 2009,
Marília morava em uma casa simples e, segundo
contou, passava por dificuldades financeiras. Já
separada do pai de Marília, Mário Mendonça, que
veio a falecer pouco depois, a mãe, dona Ruth, teve
dificuldade para pagar o aluguel após se separar do
padrasto de Marília Mendonça, em resposta à
descoberta de uma traição.
Por mais que o antigo parceiro diga que nessa época
Marília não sabia mais que “arranhar um
violãozinho”, seu talento com a voz e com as letras
era inegável: “Insisti que ela tentasse se
profissionalizar, porque vi que ela levava jeito cantando e sabia que
escrevia bem”, disse ele, por telefone, da Irlanda.
Se Marília já tinha talento para as letras, isso não demorou a ser
percebido por figurões do mercado sertanejo, chamando a atenção dos
empresários da dupla João Neto & Frederico, no escritório de Wander
Oliveira, da WorkShow. Hoje uma enorme fábrica de agenciamento de
de sucessos do sertanejo, como Naiara Azevedo e a dupla Maiara & Maraisa, na época o escritório ainda começava a despontar no mercado nacional e procurava compositores para seus artistas já lançados no show business. Na voz da dupla João Neto e Frederico, então um dos carros-chefes da empresa, algumas composições de Marília Mendonça tornaram-se sucesso, como “Crime perfeito”, lançada quando tinha 16 anos. A cantora lembra bem que, com essa última, ganhou sua primeira quantia de respeito na música sertaneja, que usou para presentear a mãe com um “Celtinha velho”.
Nos anos seguintes, o nome de Marília começou a aparecer como compositora em discos de vários artistas sertanejos de sucesso, entre eles Jorge & Mateus, Henrique & Juliano, Maiara & Maraisa. Apesar de já conseguir se manter suficientemente bem só com as composições, Marília não se dava por satisfeita: queria cantar e fazia questão de insistir nisso com seus empregadores. Até lançar Marília Mendonça ao vivo, a conversa entre as figuras do mercado sertanejo era que Marília Mendonça poderia ser mais uma promessa de cantora estrategicamente mantida apenas como compositora.
André Piunti, especialista no gênero e dono do blog Universo Sertanejo, afirmou que a prática não é incomum no meio. Antes de Marília Mendonça e suas parceiras no feminejo, poucas mulheres já haviam feito sucesso no ramo, como Roberta Miranda e, mais recentemente, Paula Fernandes. O paralelo com Roberta, aliás, é sintomático: “Roberta surgiu como uma ótima compositora, mas era preterida enquanto cantora, porque queriam que ela só escrevesse para outras pessoas. As histórias dela e de Marília são parecidas, uma vez que, depois de alguma insistência, as duas quebraram o paradigma quando começaram a cantar”, disse ele. Sobre o assunto, Marília Mendonça prefere pegar leve com o ramo, dizendo que só sofreu preconceito por representar “algo novo” e não exatamente por ser mulher.
Em um gesto raro para artistas vindos do sertanejo, o que acompanha a opinião de Piunti, Marília também ganhou a simpatia de nomes consolidados da MPB a partir de suas composições. É esperado que a cantora baiana Gal Costa grave em seu próximo disco uma música de Marília Mendonça especialmente encomendada. Ainda não há pistas que indiquem que a letra seguirá o roteiro típico das canções de sofrência, mas, segundo Alexandre Kassin, músico e produtor que já trabalhou com artistas como Caetano Veloso, Vanessa da Mata e Jorge Mautner, o sofrimento é apenas um detalhe na carreira de Marília. Acompanhando com atenção o cenário sertanejo, ele disse se impressionar com a sofisticação técnica que o estilo vem ganhando a partir de sua “possibilidade industrial”. Acredita que o sucesso de Marília Mendonça transcende as limitações de classificações musicais: “Ela é uma cantora e compositora de grande talento que, por acaso, está fazendo músicas de sofrência”. Mais que uma simples competição entre gêneros musicais, Kassin vê o fenômeno do feminejo com entusiasmo. Ele disse que não entende pessoas no ramo, seja na MPB ou não, que ainda têm algum tipo de resistência ao que classifica como música pop. Afirmou que o mais surpreendente na recente evolução do sertanejo não é seu enorme sucesso, mas uma “fatia cultural brasileira” ainda ver esses fenômenos com certa distância.
Depois do “Celtinha velho”, do surgimento como cantora e das 40 mil pessoas na gravação de Realidade, em Manaus — tudo em um intervalo de seis anos —, a vida material de Marília também mudou um bocado. A casa simples em que morava de aluguel no Parque Amazônia, bairro no sul de Goiânia, ainda exibe o mesmo portão gasto e muro sem reboco. Um bairro de classe média baixa à época de Marília Mendonça, a região tem visto seu visual e seus preços mudarem lentamente a partir de uma crescente especulação imobiliária que fez surgir condomínios verticais. Apesar de já não morar nessa porção da capital, Marília ainda é lembrada por alguns moradores: o proprietário do Skinão Bar e Lava-Rápido disse ter orgulho em ter lhe servido cerveja quando ela ainda não era famosa, e uma funcionária no Posto Bom Sucesso afirmou se lembrar muito bem de quando Marília Mendonça tocava em seu estabelecimento sem receber cachê.
Assim como outros sertanejos famosos que vivem na cidade, entre eles Leonardo, Eduardo Costa e as colegas de feminejo Simone & Simaria e Maiara & Maraisa, Marília atualmente mora em uma casa dentro de um dos vários condomínios de luxo que cercam Goiânia. Os imóveis, que costumam ter piscina, diversos quartos e andares, não raramente superam os milhões de reais e são os mais cobiçados da cidade. Para além das fronteiras do município, a cantora recentemente comprou uma chácara em Aparecida de Goiânia, zona metropolitana da capital — o valor divulgado pela imprensa, de R$ 2 milhões, é contestado pela assessoria da cantora. Ainda que o local em que more hoje seja diferente daquele em que vivia no Parque Amazônia, em ambos Marília Mendonça teve o mesmo problema com vizinhos: no início da carreira, afirmou, reclamavam de suas cantorias e no endereço atual reclamam do som alto, pelo qual já recebeu notificações formais. Rindo das faltas do presente e brincando com as implicâncias do passado, ela disse com uma ponta de revanchismo: “Antes reclamavam, hoje pagam para ir ao meu show”.
Os shows de Marília Mendonça raramente passam dos 90 minutos e seguem um modus operandi que muda muito pouco entre uma apresentação e outra. Tanto no Rio quanto em Votorantim e Volta Redonda, a sequência de músicas foi quase idêntica, começando com “Ei, Saudade” e terminando com um medley que junta todos os refrãos de Marília Mendonça ao vivo. Ao contrário do show anterior, de Wesley Safadão, que fez o público pular com canções sobre noitadas e farras, quando Marília Mendonça sobe ao palco, os fãs se põem em ritmo mais lento e emocionado.
O roteiro já começara com a chegada de Marília Mendonça ao local, saindo da van e entrando no camarim rapidamente. Com uma grande variedade de comida e bebida disponível, Marília esperou até começar o “atendimento”: fãs selecionados tiveram alguns segundos para encontrá-la e tirar uma foto. As reações ao encontro foram diferentes: três adolescentes, ao superar uma cortina na entrada da saleta, desviaram o rosto com vergonha ao encarar Marília pela primeira vez, como se vislumbrá-la por muito tempo fosse um gesto herético. Já Marcos Mendonça foi recebido com um “esse é meu fã mais cachaceiro”, em uma saudação de duas pessoas que já se viram outras vezes na mesma situação. Depois do atendimento, Marília Mendonça teve mais um tempo de introspecção até subir ao palco. Durante esse pequeno período em Volta Redonda, fumou um cigarro e rezou silenciosamente. Quando acabou a última música, antes que os instrumentos parassem de tocar, Marília Mendonça já estava dentro da van em direção ao hotel, ao jatinho ou à próxima cidade.
São poucas as pessoas que acompanham Marília em quase todas as situações, desde o quarto de hotel até as viagens aéreas com número de passageiros reduzido — o resto da equipe vai em voos comerciais ou de ônibus. Eduardo Guimarães, seu maquiador, é uma delas. Depois que começou a trabalhar com a cantora diariamente, há quase dois anos, disse ter “renascido”. Além do reconhecimento profissional, o trabalho também rendeu ao paulista dois fã-clubes e um enorme apego emocional à cantora. Em voz baixa no camarim, ele disse que Marília Mendonça pode se indispor um bocado com a agilidade de sua agenda, preferindo se isolar quando isso acontece.
Se tem algo que Marília disse odiar, no entanto — e que seu maquiador confirmou —, é se locomover de van entre os destinos. Aos trajetos, que classificou como suplício, a goiana ao menos já conseguiu se acostumar um pouco, mas à solteirice, não. Desde que desfez em agosto de 2017 o noivado com o produtor de eventos paraibano Yugnir Ângelo, um relacionamento que já durava quase dois anos, está solteira e disse não se sentir muito bem com isso, balançando a cabeça enquanto fala. Na época do rompimento, fãs não tiveram vergonha de comemorar ironicamente: Marília Mendonça triste era sinônimo de mais sucessos de sofrimento por vir. De lá para cá, depois de Realidade, lançou com Maiara & Maraisa o disco Agora é que são elas 2, mas ainda não há previsão de um próximo trabalho solo.
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À pergunta de como consegue se relacionar com uma agenda tão cheia, Marília Mendonça respondeu com um muxoxo: “Não consigo, não é?”. Classificando-se como grande ciumenta, riu quando uma de suas declarações foi evocada. Disse que não gosta de que os namorados tenham amigas, sem reconhecer que a prática pode ser considerada algo comum em relacionamentos abusivos. O motivo alegado para o fim do noivado, no entanto, foi sua idade: “Marília se sente muito nova para um relacionamento tão sério”, dizia uma nota da assessoria na época do rompimento, sem entrar em detalhes.
Por mais que os 22 anos de idade e os três de carreira não sejam muitos, o futuro musical da cantora mais ouvida do Brasil, segundo o especialista André Piunti, já está consolidado. Para ele, o diferencial que assegura a Marília um lugar cativo à frente dos outros artistas no sertanejo é a junção de voz e composição apurada, o que costuma ser raro no gênero. Se é verdade que, no último disco em parceria com as colegas de feminejo, Piunti já vê algumas mudanças na figura da cantora, que “está ficando mais séria”, ele garante que o estilo de Marília Mendonça continua único no feminejo, algo que consegue se comunicar muito bem com o público.
Se depender dela, a receita do sucesso é visível. Na metade da apresentação em Votorantim, Marília Mendonça deixou o palco quando dois cantores de apoio assumiram o show. Após dez minutos de funks acompanhados sem muita empolgação pelo público, Marília voltou, encarou os mais de 10 mil presentes e disparou com a voz grossa, antes de continuar com suas composições, para alegria geral: “Vocês querem é sofrência? Então toma!”.



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