terça-feira, 22 de junho de 2010

JOSÉ SARAMAGO nosso irmão das letras

Manoel Peres Sobrinho* 

Na ilha por vezes habitada do que somos, há  noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer. Então sabemos tudo do que foi e será. (...) Cada um de nós  é por enquanto a vida. Isso nos baste – José Saramago.

     Há dias atrás, ele escreveu em seu blog: Acho que todos nós devemos repensar o que andamos aqui a fazer. Bom é que nos divirtamos, que vamos à praia, à festa, ao futebol, esta vida são dois dias, quem vier atrás que feche a porta – mas se não nos decidirmos a olhar o mundo gravemente, com olhos severos e avaliadores, o mais certo é termos apenas um dia para viver, o mais certo é deixarmos a porta aberta para um vazio infinito de morte, escuridão e malogro.

     Imortais também morrem. Ironia histórica e contradição lógica de elementos dialógicos; mas se perpetuam por suas obras. Assim como a obra precede o autor, também, será dela, o anúncio primeiro de seu nascimento e existência, acompanhando-o como um alter ego, sublime, como uma alma gêmea, a dar realidade e sustentação à sua perenidade. Conan Doyle detestava Sherlock Holmes, porque este ultrapassou em muito à sua fama e visibilidade histórica. Hoje conhecemos melhor a criatura do que o criador. A realidade do imaginário tornou-se verdade na terra do faz de conta.

     Para quem disse que há coisas que nunca se poderão explicar por palavras, não queremos aqui falar de suas obras, que, aliás, são leituras obrigatórias, para quem quer entender o nosso mundo atual e suas perplexas idiossincrasias. Mesmo porque, como acentuou Leonardo Boff, cada leitura é uma releitura. Assim, que cada um faça a sua. Saramago deve ser mesmo, lembrado por aquilo que lemos dele, e não por aquilo que ouvimos falar. Acentuadamente um homem do seu tempo. Engajado numa literatura por vezes beirando ao ceticismo, ao ateísmo e à indisposição para negociar com o cinismo despótico e à aceitação plácida de utopias de esquerda, já que as de direita estão aí, com a sua mais nova criatura: a excludente globalização. Uma contradição de termos mas uma realidade insofismável e aterradora. Suas farpas foram sendo distribuídas àqueles que julgasse necessárias. Escritores como George Orwell, Arthur Koestler, Mario Vargas Llosa, Octavio Paz, José Guilherme Merquior, Paulo Francis, Millor Fernandes, etc., foram alvos severos de suas críticas e intolerâncias mordazes.

     Em artigo recentemente publicado, o jornalista Fernando da Mota Lima diz que Saramago era um homem público, investido de um sentido de militância política e ideológica raro na atmosfera cultural em que passamos a viver depois do patente esgotamento dos ideais e utopias gestados pelos movimentos de esquerda. Um homem engajado numa luta sem tréguas fez de sua literatura e de sua própria fama como escritor, instrumentos poderosos para acidamente atacar, quando necessário, o capitalismo, a religião, as formas correntes de opressão observáveis sob a hegemonia universal do capitalismo. O jornal oficial do Vaticano, L'OSSERVATORE Romano, não gostou nada da sua posição pública, em matéria de religião, e desfechou duras críticas ao escritor. A acusação do Vaticano era a de que o autor português recusava-se a aceitar qualquer forma de metafísica, e por conseqüência pautar sua ação fundado nos valores de uma ética secular e materialista. O Vaticano tem lá suas razões; porém, é bom lembrarmos que a própria Igreja em meio à escuridão da Idade Média, em 1000 anos de história condenou um sem-número de cristãos à fogueira por causa do recrudescimento do valor metafísico da vida cristã e sua ascese. Talvez esteja aí a desconfiança de José Saramago, e mais, o que resultou logo no século XV como o nascimento de um novo modo de pensar: a Renascença, voltando ao sofisma grego de cinco séculos antes de Cristo, ao definir o homem como a medida de todas as coisas. O diário do Vaticano, o "L'sservatore Romano", publicou um artigo no qual o escritor José Saramago é descrito como "populista e extremista" de ideologia anti-religiosa e marxista. O jornal diz que o escritor viveu encerrado numa confiança absoluta do marxismo. E que banalizou o sagrado, numa atitude que com o passar dos anos se radicalizou cada vez mais.

     Morreu aos 87 anos, em Lanzarote, Ilhas Canárias, numa espécie de auto-exílio onde vivia com sua segunda mulher, Pilar Del Rio, já que brigado com a religião e o Estado português, mas em paz com a sua consciência e os seus milhões de adeptos ao redor mundo. Único escritor de língua portuguesa a ganhar um Prêmio Nobel estabeleceu para si, uma intensa guerra contra a desvalorização da língua portuguesa de origem, negando-se a "traduções" do português de Portugal para outro português que não o seu.

Fez do vernáculo uma espécie de pátria lingüística. Autor de uma versatilidade que encanta, deixou como legado às futuras gerações 20 romances, 3 livros de contos, 5 peças de teatro, 4 livros de crônicas, 3 livros de poesias e um de viagem.

     João Tordo, escritor português e ganhador do Prêmio José Saramago 2009, com o romance As Três Vidas, diz que Saramago foi um escritor que revolucionou a literatura portuguesa: há um antes e um depois de Saramago. Ele inventou um modo de escrever. E o mais fantástico é que perguntado a Saramago por que escrevia, respondeu sem pestanejar: Escrevo para desassogar os meus leitores.

(*O autor é membro da Academia Votorantinense de Letras, Artes e História, ocupa a cadeira n º 12 e tem como patrono o escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto).

      


 

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