quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A EXÓTICA CIDADE DOS MORTOS

 

Manoel Peres Sobrinho

 

 

Há quem passa e deixa só cicatrizes./ Há quem passa semeando flores./ Há quem passa banhando em lágrimas./ Há quem passa disposto a secá-las.// (...) // Há quem passa rápido, veloz, desaparece./ Há quem deixa marcas profundas./ Há quem simplesmente passa./ Há, porém, quem fica para sempre no coração – Fragmento de Poesia fixada em túmulo do Cemitério São João Batista.

 

 

Plantada num dos pontos mais altos da cidade de Votorantim, houve um tempo em que ela esteve só, tranqüila, como todos os mortos depois do enterro, numa lealdade eterna à sua vocação de deixar os vivos seguros de que aquele (a) que faleceu, descansa em paz. Hoje, passadas algumas décadas, a cidade, com suas muitas construções e a necessidade premente de expansão de moradias por causa do déficit habitacional conseguiu, de alguma forma, abraçar o campo santo, num desejo de convivência pacífica e uma demonstração de que já não mais teme suas estórias de horror, suas lendas de fantasmas, seus mitos de almas penadas saindo dos túmulos à meia-noite numa necessidade insaciável de colóquio com os vivos e, nem, de contos de horror com defuntos putrefatos, arrastando pesadas correntes com seus ruídos terrificantes, vai assombrando vivos como num desejo cego de acerto de contas ainda pendentes. Tanto, que ao chegar ao Cemitério, para minha surpresa, foi logo um garoto disparando conversa: "Posso cuidar do seu carro?" Isto é sinal, de que aos mortos, já não se pode mais desejar, com certeza, "Rest in peace" (descanse em paz), do (latim : Requiescat in pace) pequeno epitáfio ou idiomática expressão que desejam a paz e descanso eterno a alguém que tenha morrido. (Wikipedia, in loco). Deixando para trás a vila da Barra Funda em direção ao Karafá e Capela da Penha, há uma íngreme subida para ser vencida da Avenida Santo Antonio, que agora foi facilitada por estar asfaltada. Numa espécie de platô, há um remanso, onde se encontra o Cemitério São João Batista, no número 1235. Na entrada, à esquerda, há uma placa que informa a data de sua reforma e ampliação, inaugurada em 2 de novembro de 1967. O livro, número 01, do Cemitério Municipal de Sorocaba, para registro dos sepultamentos (em Votorantim) tem um "Termo de Abertura", datado e assinado pelo Prefeito Gualberto Moreira, em 01 de fevereiro de 1950. O primeiro assento de óbito é da Sra. Maria Benedita de Camargo, que faleceu aos 79 anos, aos 27 dias de novembro de 1949, vítima de nefrite crônica. Atestada pelo médico Dr. Wehrich Tabacow quando era o administrador do Cemitério, o Sr. Aleixo Peres. Para quem transita na avenida principal, há em frente, uma espécie de cobertura plástica onde se pode ler uma inscrição bíblica bem apropriada: "Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do onipotente descansará" – Salmo 91:1. Entre os ruídos dos serviçais na limpeza das vielas, no trabalho dos pedreiros construindo ou reformando sepulturas, de pessoas simplesmente limpando os túmulos de seus parentes, ou de outros a procura de um túmulo, pode-se ainda concentrar a atenção em algumas das particularidades que esse lugar nos reserva. E a primeira coisa que nos chama a atenção é o que um amigo meu chamou de a "Feira das Vaidades", lembrando o título do primeiro romance de William Thackeray publicado em 1847. É uma verdadeira orgia de demonstração econômica. Cada um buscando superar o outro na demonstração de poder aquisitivo. Ali tem de tudo: mármores, azulejos, vitrificados e mais uma série de materiais que só podem enfeitar o túmulo para o seu próprio deleite, já que ao morto, isso de nada vale. Até aí somos egoístas. Não é ao morto que estamos fazendo, pois em muitos casos ele nem mais ali está na sepultura. Transportamos para o cemitério e reproduzimos ali as nossas classes sociais, nossas conquistas econômicas e os privilégios que auferimos nos negócios. Outra observação que se pode fazer é o transporte da religiosidade para um lugar de mortos, de cadáveres que apodrecem e são consumidos por vermes e, por fim, desaparecem. Ali se pode encontrar de tudo: das artes religiosas mais refinadas às representações de cenas bíblicas ou da história da igreja de gosto muito duvidoso. É curioso que, imaginando, grosso modo, que todos iremos para um mesmo Céu, e temos por Pai um mesmo Deus, por que então a multiplicidade grotesca e separatista de maneiras de adorar a Deus? Mais uma vez reforçamos nossas ideologias, como se isso valesse do outro lado da vida.

 

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