domingo, 10 de novembro de 2013

Transformando cenários

 Jornal Cruzeiro do Sul
Andrea Alves

Tendo como palco as ruas do Bairro da Chave, Coletivo Cê promove interação visceral entre o teatro e a comunidade. Moradores são figurantes e muitos foram englobados ao elenco




 Fernando faz pequenas participações em "Desmedida" - Fábio Rogério



Desde o dia 31 de agosto, seu Zé tem a mesma rotina aos sábados e domingos. Praticamente no mesmo horário, ele abre a janela da frente da sua casa, ali se debruça, ao lado do cachorro Téo, acende seu cigarro e faz sua cena, que se resume a responder com o olhar a palavra "pai" esbravejada por uma atriz em cena. O que parece uma pequena representação é para o homem de 67 anos a grande chance de reencontro com uma das paixões que corre em suas veias: a arte de interpretar, divertir, entreter. Sem que saísse da casa onde mora há muitos anos, ele vive a arte do teatro em Desmedida, a audaciosa montagem que os integrantes do Coletivo Cê levam-interpretam-vivenciam nas ruas e casas do bairro da Chave, em Votorantim, há mais de dois meses. "É a coisa mais linda o que eles fazem aqui. Nem parece que toda encenação é estudada. Parece que vivem aquilo de verdade só porque eles acreditam no que fazem", diz o morador.

Se o trabalho dos atores em cena soa como espontâneo é porque o retorno dos figurantes-moradores que abriram as portas de suas casas e com generosidade permitiram que Desmedida circule pelas ruas locais chegou na mesma moeda: é com espontaneidade que os moradores de todas as idades do bairro respondem e correspondem ao trabalho feito ali. O seu Zé, que assina José Alves da Rocha, que chegou a se apresentar com o Circo Guaraciaba e cantar em duplas sertanejas, tomou o bastão de porta-voz do bairro. "Admiro o que eles fazem porque fazem com empolgação, com pique. Eu apoio o grupo e acho que todos os moradores da Chave dizem o mesmo porque eles vieram contar a nossa própria história. Ninguém reclama deles aqui", garante.

Desmedida resgata a história do bairro da Chave e de seus moradores, começando no período da industrialização no local. A montagem narra a formação de uma sociedade em dois atos. O primeiro ato começa com a chegada dos imigrantes e conta a história até o ano de 1982, quando uma enchente atingiu o bairro, levando vidas e memórias dos moradores. No segundo ato, é retratada a saída da fábrica Votorantim do bairro e as mudanças que ocorreram até o momento atual. Mas Desmedida nasceu muito antes, quando os atores do Cê resgataram história, lembranças e sentimentos com os próprios moradores do local. E quantas histórias surgem entre pessoas que experimentaram a vida difícil dos operários, como bem lembra o senhor Carlos Vieria, homem de 65 anos de idade, que nasceu na Chave de pai e mãe que se conheceram na antiga fábrica de tecido do Grupo Votorantim. Homem que guarda lembranças e emoções intactas, capazes ainda de o levarem às lágrimas, quando se lembra da doença do pai. "Era criança e ainda lembro do médico da fábrica dizendo: o senhor pode pegar suas coisas e ir embora. Meu pai faleceu quando eu tinha 14 anos e logo depois comecei a trabalhar na mesma fábrica. Eram tempos tão difíceis", desabafou.

Momentos como esse, em que as doenças, como a tuberculose, rondavam a vida dos moradores da Chave e operários da fábrica também são retratados na montagem do Cê. Carlos considera os integrantes do coleitvo artistas corajosos por levantarem tantas questões e por apresentarem tudo da maneira que fizeram. Inspirado no trabalho do teatro de resgatar a história, mesmo que dolorida, Carlos, também tomado de coragem, fez uma proposta ao Coletivo Cê: quer representar o próprio pai numa das cenas de Desmedida. Como a peça surgiu daquele povo e para ele é devolvida, Júlio Mello, diretor da montagem, garante ser possível a negociação. "Desmedida não é a mesma das primeiras apresentações. Muitas cenas e personagens vividos pelos moradores foram incluídas. Sabíamos que isso podia acontecer, mas não esperávamos que a adesão e a aceitação fossem tão grande", confessa.

Pequenas grandes possibilidades

Se Desmedida deu o privilégio ao seu Zé de virar ator na janela de sua casa, também proporcionou significativas conquistas para outros moradores, como Francine Cristina Guazelli. "É perigoso as crianças ficarem nas ruas hoje em dia e o teatro aqui no bairro trouxe uma distração para elas e para os adultos também." Francine é mãe da pequena Emily Rianne Guazelli de Souza, que tem 6 aninhos e responsabilidade de gente grande - porque ela quer. Emily conquistou um papel que existia só como sugestão na peça, mas que, por conta do seu natural envolvimento com atores em cena, ganhou corpo. Ela agora representa Anarquia - personagem filha de um operário que era representada por uma atriz somente em sua fase adulta. "Ela começou a participar e agora faz parte. Nem precisa avisá-la. Ela já sabe o horário e local onde deve estar", comenta a mãe.

As crianças, que normalmente são mais viscerais, são as grandes incentivadoras do teatro ali no bairro e são muitas que se não estão em cena, ajudam na iluminação, na contra- regragem, no apoio como público... Fernando, também de 6 anos, é um deles. Na hora da peça, ele esquece da timidez - que o impediu de contar à reportagem o que faz em Desmedida - e atua com desenvoltura com pequenas participações. Seu avô, Ismael Roque Filho -"mas coloca Maé da Banda porque faço parte de um grupo de música" - comemora a ida do Coletivo Cê ao bairro. "Desde que chegaram aqui, os artistas só trouxeram coisas boas. E também oportunidades. Meu neto agora se interessa por teatro", contou.

Dolores Dias dos Santos, 84 anos, que se aposentou como operária na fábrica de tecido do bairro e diz ser muito tímida, também cumpre seu papel à risca: em dia de teatro, fica na porta de sua casa e às vezes atravessa a rua durante a cena. "Outro dia minhas enteadas vieram até minha casa para ver a peça e a minha participação. Elas gostaram muito e eu também gosto porque essa turma do teatro trouxe alegria para o bairro", diz com orgulho de ter vencido a timidez.

O que se sabe é que o teatro ali tem cumprido sua função de despertar valores, reflexões, autoconfiança. Maria de Fátima Alves, 60 anos de idade e 50 anos de Chave, sempre gostou de poesias e desde menina gostava de escrever. Depois que Desmedida começou a passar na rua de sua casa - e lhe permitiu fazer uma ponta na encenação, é claro - Fátima voltou a colocar no papel seus pensamentos. Com duas folhas de caderno na mão, ela falou, com ares de menina. "Esse é para a turma do Cê e essa é para turma do jornal", disse à reportagem, entregando um poema que tem os versos "...se não cuidarmos agora/ de amar a natureza/ talvez numa geração próxima/ não poderemos contemplar todo dia essa beleza...".

Mensurar as prováveis mudanças no bairro do Chave e em sua gente torna-se tarefa praticamente impossível. "Tem pai falando que as crianças agora querem fazer teatro, ou música. Pode ser que daqui saiam pessoas que se realizem com a arte, que a usem como um instrumento. Não tem como saber quais serão so frutos desses trabalhos por aqui", admite Júlio. "Talvez a gente nunca vá saber."

Senso crítico

Renata Milano de Campos escolheu participar de uma das cenas que ela considera a mais forte da peça Desmedida, em que são retratados usuários de drogas. "É cena dos "nóias". É forte porque representa as pessoas que gritam, mas que nunca são ouvidas pela sociedade", disse a menina de 13 anos, que também ajuda na contra-regragem da montagem. Ela já tinha participado de um dos cursos de teatro oferecido pelo Coletivo Cê, mas foi vendo e sentindo Desmedida que seu interesse por essa arte despertou. "Um dia pedi pro Júlio deixar eu participar da cena dos "nóias" e ele disse que deixaria se eu cantasse a música toda da cena pra ele. Eu cantei e ele cumpriu a promessa."

No primeiro dia, Renata teve medo de errar, teve dúvidas de que iria acertar. "É uma cena que exige muito. A gente tem que pular no alambrado, xingar as pessoas. Mas graças ao bom Deus eu consegui." Sua mãe e seu irmão ainda não viram sua representação. "Na hora da peça, minha mãe está fazendo janta pro meu irmão porque ele trabalha no turno da madrugada." Mas Renata comemora a folga da família nesse fim de semana. Mãe e irmão vão conseguir, enfim, ver a adolescente na cena em que fez questão de participar. "O povo tem que entender que os "noiados" também são humanos", reitera a menina de senso crítico e que já sabe o que vai fazer quando a temporada de Desmedida terminar. Renata, que já entendeu para que serve essa ferramenta, vai se aprofundar no teatro.

Serviço

Espetáculo Desmedida, do Coletivo Cê

Aos sábados e domingos, às 18h, até o dia 1º de dezembro

Valor da entrada: "pague quanto puder".

A cada apresentação podem participar 40 pessoas, por conta da dinâmica da peça, encenada a céu aberto pelas ruas do bairro. O agendamento para assistir à peça, ocorre de uma maneira inusitada: através do Facebook, com Gelsomino Veneto (www.facebook.com/gelsomino.veneto), personagem desse trabalho. Indica-se fazer o agendamento com no mínimo uma semana de antecedência. Em caso de chuva, não haverá apresentação.

Mais informações e ficha técnica com nomes de todos os responsáveis: www.coletivoce.com.



Atores entram na casa - e na vida - dos moradores 

Dona Cida, entusiasta do grupo, recebe os atores e a reportagem do Mais Cruzeiro em casa - Fábio Rogério

 

Se por um lado há muita emoção em relembrar o passado, a comoção em falar de opressão e oportunidades, há aqueles que fazem uso de Desmedida para deixar a vida mais graciosa. Quem se incumbiu dessa tarefa ali no bairro foi dona Cida (que na verdade se chama Edna Vieira Pereira, mas tornou-se Cida ainda bebê, desde o dia em que a tia decidiu lhe chamar assim). Só quem tem jeito pra rir da vida poderia se responsabilizar por dona Irene - personagem que é um boneco morto e já posicionado num caixão. "Tem gente que tem medo, mas imagina só", ela desdenha.

É na pequena varanda da casa de dona Cida que dona Irene fica guardada esperando para entrar em cena pelas mãos dos atores, que saem em marcha fúnebre pelas ruas do bairro. Como não podia ser diferente numa relação tão inusitada, a amizade entre dona Irene e dona Cida rendeu boas histórias. Dizem que a sobrinha, num fim de semana em visita à tia, pediu que dona Cida tirasse dali o caixão com a mulher morta. Mas era dia de teatro e dona Cida preferiu cumprir o compromisso assumido com a defunta e com os atores e quem teve que ir embora foi a sobrinha (poucos sabem, mas a primeira vez que a repórter esteve no bairro levou um susto com a tal personagem). "Meu filho tem dito que desde que dona Irene se instalou em casa o Corinthians só perde", diverte-se a simpática dona Cida.

Histórias de relações estreitas não são nem um pouco raras naquele bairro em que as janelas das casas ficam próximas às ruas e que uma parede praticamente se escora na outra, aproximando também a vizinhança. Mas muitas das interferências e das trocas entre atores e moradores acontece às escondidas. Foi assim com o apetitoso prato preparado por dona Loide, esposa do seu Zé, e que o ator Hércules Soares experimentou entre uma cena e outra. Em dia de apresentação, Hércules entra na casa de seu Zé e dona Loide, atravessa a cozinha, sobe para o terraço e faz uma cena na varanda do piso superior da residência. "Num sábado, eu entrei e perguntei o que era aquele prato cheiroso que dona Loide estava fazendo. Era um lance diferente que empana o macarrão e depois frita. Uma coisa de louco", conta o ator. "No outro domingo, quando entrei na casa dela para fazer minha cena, ela me deu um prato e falou que era para eu comer que dava tempo. Eu comi rapidinho aquele prato delicioso", disse ele, sobre o prato que muitos italianos devem conhecer como "tijolinho".

Grupo recebe a visita ilustre de Kai Berthold

Os integrantes do Coletivo Cê receberam, na última semana, a visita do ator dinamarquês Kai Berthold, que veio ao Brasil para apresentar a peça A vida crônica, do diretor Eugenio Barba, e que circulou pelo Sesc na capital e algumas cidades do interior. Kai, que faz parte do grupo Odin Teatre, ouviu dos artistas do Cê a proposta de arte realizada no Bairro da Chave e abriu espaço na sua agenda ao aceitar o convite dos atores para passar um dia ali na sede do coletivo - com direito a banho de cachoeira. "Eu estava em São Paulo e quando ouvi sobre o trabalho deles e essa coisa de cascata vim prontamente", ele brincou. Na tarde em que passou no bairro, o ator acompanhou os artistas e a reportagem do Mais Cruzeiro no diálogo com os moradores da Chave e, numa mistura de português, espanhol e italiano, destacou o "bom sistema de escuta" do grupo brasileiro. "Eles olharam para si mesmos e para o que encontraram aqui. Fizeram um trabalho muito rico porque deixaram as pessoas orgulhosas de seu bairro", afirmou.

Para o ator, que faz um trabalho semelhante em sua cidade, na Dinamarca, mas que também faz apresentações mundo afora vez ou outra, o teatro não acontece só no palco. Existem várias formas de fazer teatro e todas são importantes, ele frisou, e classificou de inteligente a maneira de fazer teatro do grupo sediado em Votorantim. "É muito significativo o que fizeram, foi uma troca preciosa e os atores encontraram pessoas disponíveis e espontâneas. O senhor Carlos estava presente na montagem e no depoimento porque a história dele foi retratada. Fátima entregou a poesia porque o teatro passou na porta de sua casa. Sem teatro, talvez não houvesse motivo e alguém para ela mostrar sua poesia." Kai Berthold ainda afirmou que "o ator pode não sobreviver somente do teatro feito à base de troca, mas esse é um caminho muito importante. Certamente, as pessoas aqui do bairro vão proteger o trabalho deles se um dia for preciso".

Grupo é contemplado com Proac para próximo trabalho

A presença feminina na fábrica de tecido do Grupo Votorantim no início do século 20 será o assunto abordado no próximo projeto que o Coletivo Cê vai realizar no ano que vem no Bairro da Chave. "Queremos dar continuidade à pesquisa feita aqui, mas com olhar voltado às operárias. Queremos falar sobre o papel dessas mulheres na formação dessa sociedade", comenta o ator Hércules Soares. O próximo trabalho terá uma configuração diferente, ele adianta, com três atrizes apenas - Mariana Rossi, Daiana de Moura e Giuliana Bona - e Júlio Mello e Hércules invertendo seus papéis dessa vez: Júlio prepara o elenco e Hércules dirige a montagem. A realização do projeto será possível porque o Coletivo Cê foi contemplado com um edital do Programa de Ação Cultura (Proac) específico para cidades com menos de 500 mil habitantes. "Vamos ter um repasse no valor de R$ 50 mil, por isso teremos outra configuração na próxima montagem."

Sem data prevista de estreia, o trabalho tem um título que já homenageia as operárias ao usar uma expressão de origem tupi que significa mulher resistente: Cunhã-Antã: Desdobramento da investigação acerca das memórias das operárias votorantinenses.

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