Andrea Alves
Tendo como palco as ruas do Bairro da Chave, Coletivo Cê promove interação visceral entre o teatro e a comunidade. Moradores são figurantes e muitos foram englobados ao elenco
Fernando faz pequenas participações em "Desmedida" - Fábio Rogério
Se o trabalho dos atores em cena soa como espontâneo é porque o retorno dos figurantes-moradores que abriram as portas de suas casas e com generosidade permitiram que Desmedida circule pelas ruas locais chegou na mesma moeda: é com espontaneidade que os moradores de todas as idades do bairro respondem e correspondem ao trabalho feito ali. O seu Zé, que assina José Alves da Rocha, que chegou a se apresentar com o Circo Guaraciaba e cantar em duplas sertanejas, tomou o bastão de porta-voz do bairro. "Admiro o que eles fazem porque fazem com empolgação, com pique. Eu apoio o grupo e acho que todos os moradores da Chave dizem o mesmo porque eles vieram contar a nossa própria história. Ninguém reclama deles aqui", garante.
Desmedida resgata a história do bairro da Chave e de seus moradores, começando no período da industrialização no local. A montagem narra a formação de uma sociedade em dois atos. O primeiro ato começa com a chegada dos imigrantes e conta a história até o ano de 1982, quando uma enchente atingiu o bairro, levando vidas e memórias dos moradores. No segundo ato, é retratada a saída da fábrica Votorantim do bairro e as mudanças que ocorreram até o momento atual. Mas Desmedida nasceu muito antes, quando os atores do Cê resgataram história, lembranças e sentimentos com os próprios moradores do local. E quantas histórias surgem entre pessoas que experimentaram a vida difícil dos operários, como bem lembra o senhor Carlos Vieria, homem de 65 anos de idade, que nasceu na Chave de pai e mãe que se conheceram na antiga fábrica de tecido do Grupo Votorantim. Homem que guarda lembranças e emoções intactas, capazes ainda de o levarem às lágrimas, quando se lembra da doença do pai. "Era criança e ainda lembro do médico da fábrica dizendo: o senhor pode pegar suas coisas e ir embora. Meu pai faleceu quando eu tinha 14 anos e logo depois comecei a trabalhar na mesma fábrica. Eram tempos tão difíceis", desabafou.
Momentos como esse, em que as doenças, como a tuberculose, rondavam a vida dos moradores da Chave e operários da fábrica também são retratados na montagem do Cê. Carlos considera os integrantes do coleitvo artistas corajosos por levantarem tantas questões e por apresentarem tudo da maneira que fizeram. Inspirado no trabalho do teatro de resgatar a história, mesmo que dolorida, Carlos, também tomado de coragem, fez uma proposta ao Coletivo Cê: quer representar o próprio pai numa das cenas de Desmedida. Como a peça surgiu daquele povo e para ele é devolvida, Júlio Mello, diretor da montagem, garante ser possível a negociação. "Desmedida não é a mesma das primeiras apresentações. Muitas cenas e personagens vividos pelos moradores foram incluídas. Sabíamos que isso podia acontecer, mas não esperávamos que a adesão e a aceitação fossem tão grande", confessa.
Pequenas grandes possibilidades
Se Desmedida deu o privilégio ao seu Zé de virar ator na janela de sua casa, também proporcionou significativas conquistas para outros moradores, como Francine Cristina Guazelli. "É perigoso as crianças ficarem nas ruas hoje em dia e o teatro aqui no bairro trouxe uma distração para elas e para os adultos também." Francine é mãe da pequena Emily Rianne Guazelli de Souza, que tem 6 aninhos e responsabilidade de gente grande - porque ela quer. Emily conquistou um papel que existia só como sugestão na peça, mas que, por conta do seu natural envolvimento com atores em cena, ganhou corpo. Ela agora representa Anarquia - personagem filha de um operário que era representada por uma atriz somente em sua fase adulta. "Ela começou a participar e agora faz parte. Nem precisa avisá-la. Ela já sabe o horário e local onde deve estar", comenta a mãe.
As crianças, que normalmente são mais viscerais, são as grandes incentivadoras do teatro ali no bairro e são muitas que se não estão em cena, ajudam na iluminação, na contra- regragem, no apoio como público... Fernando, também de 6 anos, é um deles. Na hora da peça, ele esquece da timidez - que o impediu de contar à reportagem o que faz em Desmedida - e atua com desenvoltura com pequenas participações. Seu avô, Ismael Roque Filho -"mas coloca Maé da Banda porque faço parte de um grupo de música" - comemora a ida do Coletivo Cê ao bairro. "Desde que chegaram aqui, os artistas só trouxeram coisas boas. E também oportunidades. Meu neto agora se interessa por teatro", contou.
Dolores Dias dos Santos, 84 anos, que se aposentou como operária na fábrica de tecido do bairro e diz ser muito tímida, também cumpre seu papel à risca: em dia de teatro, fica na porta de sua casa e às vezes atravessa a rua durante a cena. "Outro dia minhas enteadas vieram até minha casa para ver a peça e a minha participação. Elas gostaram muito e eu também gosto porque essa turma do teatro trouxe alegria para o bairro", diz com orgulho de ter vencido a timidez.
O que se sabe é que o teatro ali tem cumprido sua função de despertar valores, reflexões, autoconfiança. Maria de Fátima Alves, 60 anos de idade e 50 anos de Chave, sempre gostou de poesias e desde menina gostava de escrever. Depois que Desmedida começou a passar na rua de sua casa - e lhe permitiu fazer uma ponta na encenação, é claro - Fátima voltou a colocar no papel seus pensamentos. Com duas folhas de caderno na mão, ela falou, com ares de menina. "Esse é para a turma do Cê e essa é para turma do jornal", disse à reportagem, entregando um poema que tem os versos "...se não cuidarmos agora/ de amar a natureza/ talvez numa geração próxima/ não poderemos contemplar todo dia essa beleza...".
Mensurar as prováveis mudanças no bairro do Chave e em sua gente torna-se tarefa praticamente impossível. "Tem pai falando que as crianças agora querem fazer teatro, ou música. Pode ser que daqui saiam pessoas que se realizem com a arte, que a usem como um instrumento. Não tem como saber quais serão so frutos desses trabalhos por aqui", admite Júlio. "Talvez a gente nunca vá saber."
Senso crítico
Renata Milano de Campos escolheu participar de uma das cenas que ela considera a mais forte da peça Desmedida, em que são retratados usuários de drogas. "É cena dos "nóias". É forte porque representa as pessoas que gritam, mas que nunca são ouvidas pela sociedade", disse a menina de 13 anos, que também ajuda na contra-regragem da montagem. Ela já tinha participado de um dos cursos de teatro oferecido pelo Coletivo Cê, mas foi vendo e sentindo Desmedida que seu interesse por essa arte despertou. "Um dia pedi pro Júlio deixar eu participar da cena dos "nóias" e ele disse que deixaria se eu cantasse a música toda da cena pra ele. Eu cantei e ele cumpriu a promessa."
No primeiro dia, Renata teve medo de errar, teve dúvidas de que iria acertar. "É uma cena que exige muito. A gente tem que pular no alambrado, xingar as pessoas. Mas graças ao bom Deus eu consegui." Sua mãe e seu irmão ainda não viram sua representação. "Na hora da peça, minha mãe está fazendo janta pro meu irmão porque ele trabalha no turno da madrugada." Mas Renata comemora a folga da família nesse fim de semana. Mãe e irmão vão conseguir, enfim, ver a adolescente na cena em que fez questão de participar. "O povo tem que entender que os "noiados" também são humanos", reitera a menina de senso crítico e que já sabe o que vai fazer quando a temporada de Desmedida terminar. Renata, que já entendeu para que serve essa ferramenta, vai se aprofundar no teatro.
Serviço
Espetáculo Desmedida, do Coletivo Cê
Aos sábados e domingos, às 18h, até o dia 1º de dezembro
Valor da entrada: "pague quanto puder".
A cada apresentação podem participar 40 pessoas, por conta da dinâmica da peça, encenada a céu aberto pelas ruas do bairro. O agendamento para assistir à peça, ocorre de uma maneira inusitada: através do Facebook, com Gelsomino Veneto (www.facebook.com/gelsomino.veneto), personagem desse trabalho. Indica-se fazer o agendamento com no mínimo uma semana de antecedência. Em caso de chuva, não haverá apresentação.
Mais informações e ficha técnica com nomes de todos os responsáveis: www.coletivoce.com.
Atores entram na casa - e na vida - dos moradores
Dona Cida, entusiasta do grupo, recebe os atores e a reportagem do Mais Cruzeiro em casa - Fábio Rogério





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