Jornal Cruzeiro do Sul
Usar dinheiro da Câmara para pagar despesas realizadas fora do expediente, até prova em contrário, equivale a prodigalizar o dinheiro público em favor próprio
A jornada de protestos de junho de 2013 por todo o Brasil celebrizou a frase "não é pelos 20 centavos", numa alusão ao aumento da tarifa do transporte público que evocou a catarse dos brasileiros contra tudo aquilo que lhes causa descontentamento e indignação. Logo nos primeiros protestos, percebeu-se que os 20 centavos, razão primordial da insatisfação dos jovens, eram importantes em si, mas não eram tudo: infinitamente mais grave que o aumento da tarifa era o estado de coisas que ele simbolizava e em que ele foi gerado, marcado pelo encastelamento da classe política, em contraposição à falta de atenção para as demandas sociais e à baixa eficiência dos serviços públicos.
Algo semelhante ocorre com o consumo de pizza que se tornou tradicional ao final das sessões da Câmara de Votorantim, conforme apurou o repórter Wilson Gonçalves Júnior (Em nove meses - Vereadores de Votorantim gastam R$ 8 mil com rodadas de pizza ao fim das sessões, 24/1, pág. A12). Existe o fato em si, com sua gravidade intrínseca, e existe o que o fato representa. E, embora a Câmara, em nota oficial, tenha procurado minimizar as implicações de seu calórico costume, nem uma coisa nem outra são boas.
Por um lado, tem-se um gasto que pode, facilmente, ser classificado como supérfluo, já que realizado, habitualmente, depois das sessões. Por outro, tem-se uma atitude que indica uma possível confusão entre o público e o privado, a qual, irradiada para outras ações da Câmara e da administração pública, fatalmente acabará por criar o conhecido caldo de cultura em vicejam a ineficiência, os aumentos abusivos de impostos, a inversão de prioridades e, não raro, a improbidade dos agentes públicos.
À primeira vista, pode parecer exagero discutir gastos com pizza, mas o questionamento é pertinente. Primeiro, porque à luz das regras morais e legais que cercam o trato com a coisa pública, importa menos o volume de recursos do que a correção com que eles são desembolsados. Segundo, porque -- e aqui cabe parafrasear o refrão dos protestos de junho -- "não é pela pizza", ou só pela pizza. Usar dinheiro da Câmara para pagar despesas realizadas fora do expediente, até prova em contrário, equivale a prodigalizar o dinheiro público em favor próprio.
Fosse o alimento servido durante as sessões -- e desde que estas requeressem a presença dos vereadores por muitas horas --, não haveria nada a opor, mas não é esse o caso. As alegações de que o alimento é barato e de que outras câmaras da região também saciam o apetite de seus integrantes, inclusive com tábuas de frios, não passam de diversionismo: uma despesa errada é uma despesa errada, não importa se grande ou pequena. E os erros alheios jamais devem ser evocados para justificar nossos próprios erros.
Outro argumento claudicante apresentado pela Câmara é que, das rodadas de pizza, também participam funcionários da Casa, que esticam o expediente nos dias de sessão. Mais correto, se existe mesmo alguma preocupação com esses servidores, seria fornecer-lhes um jantar condigno, ao invés de obrigá-los a esperar até o fim dos trabalhos para se alimentar.
Por fim, é preciso questionar a alegação de que o dinheiro destinado ao Legislativo, "por lei", não pode ser gasto em obras e outros benefícios públicos. A Câmara tem o poder de fazer e alterar as leis. Se não existe, na Lei Orgânica de Votorantim, mecanismo que lhe permita devolver à Prefeitura o dinheiro que não é gasto no exercício, nada impede que os vereadores criem os meios legais para que isso ocorra.
Isso, no entanto -- entenda-se bem --, só deverá ocorrer se o apreço que os legisladores votorantinenses têm pela correção dos procedimentos for maior do que sua devoção pelas pizzas portuguesa, de estrogonofe e lombo canadense, as campeãs de pedidos nas noites de segunda-feira.
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