Parentes de vítimas da região de Sorocaba (SP) passam por tratamento psicológico, trocam móveis e tentam 'blindar' inocentes. Segundo a ONU, uma em cada três mulheres é ou será vítima de violência no mundo.
Juliana Jovino (à esq.), Ana Lúcia (meio) e Daniele Candido (à dir.) foram vítimas de feminicídio (Foto: Clemilson Bortoletto/TV TEM)
Ela só morreu por causa do coração bom que tinha.” O desabafo de Lucas Leonardo da Silva Bezerra, de 23 anos, morador de Salto (SP), faz referência à manhã do dia 17 de maio, quando viu a mãe se tornar mais um número na estatística do feminicídio. Ela foi morta pelas mãos do ex-companheiro, dentro de casa - o casal estava em processo de separação.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), uma em cada três mulheres é ou será vítima de violência de gênero no mundo.
Desde março de 2015, a legislação brasileira prevê o crime de feminicídio para assassinatos que envolvam “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher".
Antes da lei, não havia punição específica. O crime era tratado de forma “genérica” e a pena poderia variar entre 6 e 20 anos. Atualmente, a legislação reconhece a infração por razões da condição do gênero feminino e a pena vai de 12 a 30 anos de reclusão.
Apesar da lei ser um avanço na luta contra a violência, os casos de feminicídio continuam se repetindo, com uma frequência cada vez maior. E as famílias marcadas pela tragédia precisam aprender a conviver com a saudade e com o medo de que o crime possa acontecer novamente com uma pessoa querida, apenas pelo fato dela ser uma mulher.
Para mostrar as marcas deixadas pelo feminicídio, o G1 conversou com parentes de três vítimas desse crime: o jovem Lucas, cujo relato sobre a mãe, Ana Lúcia Silva, abre esta reportagem; a irmã de Juliana Jovino, localizada morta no Natal de 2017, em uma represa; e o irmão de Daniele Candido, espancada pelo marido e achada morta pelos irmãos embaixo do sofá.
Cicatrizes e fotos
Lucas é filho da vítima que foi morta pelo marido em Salto (Foto: Carlos Dias/G1)
O jovem e a mãe dormiam na manhã do dia 17 maio quando foram pegos de surpresa pelo agressor armado com um faca. Segundo Lucas, o ex-padrasto não aceitava o fim do relacionamento e era usuário de drogas.
Marcos Laureano esfaqueou o jovem várias vezes no pescoço. Em seguida, atacou a ex-companheira, Ana Lúcia Silva. Mesmo gravemente ferido, o rapaz conseguiu fugir para pedir socorro enquanto a mãe segurava o criminoso.
Uma câmera de segurança flagrou o momento em que ele saiu coberto de sangue na rua e vizinhos chamaram o resgate. A mulher de 49 anos não resistiu ao ataque.
“Foi tudo muito rápido. Mas eu só sobrevivi porque minha mãe o impediu de me matar. Acordei às 7h e às 7h30 já estava sendo socorrido pela ambulância.”
Lucas, de Salto, guardou as fotos com a mãe (Foto: Carlos Dias/G1)
Hoje o sobrevivente mora com o pai e passa diariamente por fisioterapia por conta dos golpes de facas terem acertado partes do pescoço.
“Hoje carrego as cicatrizes. Se eu prendo o cabelo, elas aparecem. Tenho que aprender a lidar, porque esquecer eu não vou”, diz o jovem ao G1, revendo fotos da mãe.
Segundo o filho, Lúcia era uma pessoa doce com a família e conheceu o agressor quando ainda eram vizinhos. O relacionamento durou seis anos com histórico turbulento de crises do ex-padrasto. Marcos tentou suicídio após o crime, mas sobreviveu e está preso.
'Gostava de viver'
Filha de Juliana Jovino é cuidada pelos irmãos e pela mãe em Sorocaba (Foto: Carlos Dias/G1)
A morte de Juliana Jovino aos 24 anos causou comoção no natal de 2017. Antes de a jovem ter o corpo localizado na represa de Votorantim, a filha dela foi deixada abraçada a uma árvore sozinha em uma de Sorocaba (SP).
Na época, a vítima conheceu Celso Rodrigues Nunes, de 33 anos, pelas redes sociais e marcou um encontro perto de casa, no bairro Nova Esperança. Segundo o relato do criminoso à Polícia Civil, os dois teriam usado drogas entre os dias 23 e 24 de dezembro depois de irem a um churrasco de uma amiga dela no mesmo bairro.
No entanto, antes de seguirem para a casa dele, em Votorantim, Juliana passou pegar a filha. A jovem passou mal quando estava com ele e, desesperado, a colocou desacordada no banco de trás e deixou na água da represa. A filha dela foi abandonada na rua.
Para tentar “blindar” a criança de 3 anos - que teria presenciado toda a movimentação do criminoso - e amenizar a falta da mãe, a família optou por mudar os móveis da casa, pintá-la e explicar que “a mãe está no céu”.
“Nós quatro [irmãs e avó] cuidamos dela [a criança] para que seja uma pessoa boa no futuro. Fizemos a mudança não para apagar minha irmã, mas para amenizar a dor”, conta Vera Lúcia Jovino, de 30 anos.
Com os olhos cheios de lágrima e voz trêmula, Vera se emociona ao lembrar de Juliana e a luta diária contra o vazio em casa. As irmãs da vítima e a menina passam por consultas no psicólogo.
“Era uma pessoa que gostava de viver. Vivia um dia de cada vez e bem vivido. Tento pensar que ela está melhor que a gente, mas é difícil.”
Celso Rodrigues Nunes foi preso pela Polícia Civil de Votorantim e deve ir a júri popular.
A vida por um celular
Irmão de Daniele guarda vídeos da vítima como lembrança (Foto: Carlos Dias/G1)
Dentre os três casos, o mais recente é o da estudante Daniele Candido, morta pelo marido aos 21 anos. A vítima foi agredida no dia 11 de junho e deixada sem vida debaixo do sofá, no bairro Itapeva, em Votorantim.
Segundo o irmão, Danilo Candido, de 26 anos, no dia do crime todos estavam na casa dela e se falaram pela última vez quando Daniele tinha acabado de chegar da igreja. Ela não atendeu ligações nos dias seguintes.
Desconfiado, ele voltou ao imóvel com a outra irmã, pulou a janela e achou marcas de sangue embaixo do sofá na sala onde estava a vítima.
Uma denúncia anônima apontou a localização do suspeito, que foi preso em Porto Feliz (SP). A família da vítima afirma que o rapaz é usuário de drogas e poderia estar devendo ao tráfico. Uma briga teria começado quando ele tentou pegar o celular dela para quitar a suposta dívida.
“Foi na semana que ela ia fazer aniversário. Pensar que ela está no céu é o que alivia porque uma perda dessa machuca muito.”
A vítima e o criminoso eram casados há 13 anos e se conheceram na frente da igreja, em Porto Feliz. Na época, começaram a morar juntos e logo surgiram as primeiras desavenças e crises de ciúme dele.
“Foi tipo o que dizem ser ‘amor à primeira vista’. Ele até parecia ser gente boa, mas o problema era também a cocaína. Eu só queria saber o motivo, o ‘por quê?’ de tirar a vida dela”, desabafa.
Situação preocupante
Ao G1, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informou que foram instaurados 2.643 novos processos envolvendo feminicídio em 2017, e outros 1.287 novos processos em 2016, no Brasil. Ainda segundo o CNJ, o Tribunal de São Paulo não apresentou revisão dos dados de 2016.
Já o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou na quinta-feira (9) os números de mulheres vítimas de homicídio no ano passado: 4.539. Deste total, 1.133 foram vítimas de feminicídio.
Entretanto, uma pesquisa feita pelo Núcleo de Gênero do Ministério Público em São Paulo, em março, apontou que 45% dos crimes ocorreram por separação ou pedido de separação, 30% por ciúmes ou posse e 17% em meio a uma discussão. A pesquisa analisou 364 casos de feminicídio em 121 cidades no estado de São Paulo
Segundo o promotor de Justiça Wellington dos Santos Veloso, o feminicídio pode surgir em um intenso sentimento de posse e, em muitos casos, a mulher pode ser vista pelo agressor como objeto e o "ódio" levar à morte da vítima.
“É a materialização da clássica ameaça segundo a qual ‘se você não vai ser minha, não será de ninguém’. No Brasil, o cenário que mais preocupa é o do crime cometido por parceiro íntimo, em contexto de violência doméstica e familiar, e que geralmente é precedido por outras formas de violência e, portanto, poderia ser evitado”, explica.
A psicóloga do Conselho Regional de Sorocaba Ione Aparecida Xavier salienta que amigos, parentes e principalmente as mulheres podem ficar atentos a possíveis sinais que podem levar à morte de uma vítima.
“Quando a gente pensa em um primeiro sinal de violência e que a vítima pode se tornar uma vítima entendo que consiste em não poder viver o seu sentido de liberdade plena a partir das suas escolhas, seus pensamentos e seus comportamentos.”
Em relação aos casos existentes, Ione afirma que a tragédia deixa marcas psicológicas por gerações em um núcleo familiar. Com isso, aconselha que os parentes procurem ajuda para lidar com os traumas da perda.
“É preciso ajudar também quem fica. É um desafio, mas é possível enfrentar esse problema.”
O serviço do número 180 é gratuito de forma integral e garante o anonimato em casos de denúncias.





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