segunda-feira, 16 de abril de 2012

A carona e a Constituição

Notícia publicada na edição de 16/04/2012 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 003 do caderno A -


Muitas pessoas acreditam que políticos bons são aqueles que quebram galhos e ajudam nas horas difíceis, com favores pessoais que fazem do cidadão um eterno pedinte daquilo que é seu por direito

Em aula magna na Faculdade de Direito de Itu na última quinta-feira, o vice-presidente da República, Michel Temer, abordou um aspecto interessante da prática constitucional no País, que é a convergência da Constituição de 1988 com a "realidade das ruas" - fenômeno ao qual o político de Tietê, a quem a história concedeu a honra de participar pessoalmente da elaboração da Carta Magna brasileira, atribui a estabilidade social, institucional e política do Brasil de hoje.

Com efeito, quase um quarto de século após aquele histórico outubro de 1988, em que a Constituição Cidadã foi promulgada pelo Congresso Nacional, é cada vez menor o rol dos que postulam ser a Constituição um livro fictício, sem consequências palpáveis para a vida do País.
Em parte devido ao descortino dos constituintes de então, que legaram à posteridade uma Constituição avançada mesmo para os padrões dos países mais desenvolvidos, em parte graças à coragem do Supremo Tribunal Federal (STF), que não se tem furtado ao dever de interpretar o texto constitucional e conferir concretude a conceitos conflitantes ou abstratos, o Brasil tem hoje uma Carta viva, capaz de assegurar direitos e impor deveres, segundo princípios sólidos de direitos humanos e sociais, sem afastar-se um milímetro do plano democrático traçado por uma geração de sofridos sonhadores, muitos deles emersos dos porões da tortura e do exílio, sequiosos por construir logo de uma vez uma pátria de liberdade, igualdade e respeito ao cidadão.
Muitos preceitos firmados em 1987/88 e complementados ou alterados depois, por meio de emendas constitucionais, encontraram aplicabilidade prática e estão hoje incorporados ao cotidiano dos governantes e da população. Outros, porém, enfrentam a resistência teimosa tanto dos que governam quanto de uma parcela dos governados, atados que estão, ainda, ao lastro de uma cultura política que remonta aos tempos do coronelismo, dos currais eleitorais e dos "votos de cabresto" - aqueles que o político cultivava acostumando os eleitores a comer em sua mão, de forma a poder colhê-los de tempos em tempos.
Uma reflexão sobre essa velha tradição foi proporcionada aos leitores deste jornal, na semana passada, por flagrante feito pelo repórter fotográfico Erick Pinheiro, que documentou o uso de um carro da Câmara de Votorantim, a serviço do vereador Bruno Martins de Almeida (PSDB), para transportar um casal de um centro de fisioterapia em Sorocaba até um bairro da cidade vizinha ("Votorantim - Vereador utiliza carro da Câmara para dar carona", 12/4, pág. A6).
O uso de veículos e funcionários da administração pública de qualquer dos poderes para fins particulares é considerado ato de improbidade administrativa pela lei nº 8.429/1992 (artigo 10º, inciso 13). O vereador afirmou que apenas pediu para seu motorista dar uma "carona" a um velho amigo que encontrara no centro de fisioterapia. Curioso é que Martins estava com seu carro particular e poderia ter dado a carona com seus próprios meios, mas achou mais conveniente pedir ao motorista da Câmara que o fizesse com o veículo oficial.
Muitas pessoas acreditam que políticos bons são aqueles que quebram galhos e ajudam nas horas difíceis, com favores pessoais que fazem do cidadão um eterno pedinte daquilo que é seu por direito. Políticos clientelistas tiram vantagem dessa cultura de balcão e usam bens e serviços públicos, assim como os próprios mandatos, para distribuir benefícios no varejo, quando deveriam trabalhar por políticas públicas que atendessem a população de forma impessoal, como manda a Constituição.
O caso de Votorantim, assim como o vergonhoso "fura-fila" da saúde em Sorocaba, ilustra uma situação em que os preceitos constitucionais ainda não encontraram eco na "realidade das ruas". Mas a superação dessa contradição é só uma questão de tempo e, principalmente, de consciência do eleitor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.

Ouça a Rádio Votorantim