Notícia publicada na edição de 16/03/14 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 009 do caderno A
Daniela Jacinto
Documentação permitirá aos descendestes de José Joaquim de Camargo serem incluídos nas políticas públicas nacionais
A escritura descreve a área adquirida, porém o faz por córregos e cachoeiras - Fábio Rogério


A comunidade remanescente do quilombo Os
Camargo aguarda há 14 anos por uma documentação que permitirá aos
descendentes de José Joaquim de Camargo serem incluídos nas políticas
públicas nacionais. Nos processos que envolvem reconhecimento de
comunidades quilombolas, existem seis peças técnicas para a conclusão de
um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que podem
ocorrer concomitantemente. Os Camargo afirmam já ter conseguido a maior
parte dos documentos e que a única coisa que falta para garantir seus
direitos é a delimitação do território. "Mas agora está parado no
Incra", reclamam João Fernandes e os primos Edson Correa e Luiz Carlos
Batista de Camargo. A comunidade reivindica a posse de parte de terras
em Sorocaba, Votorantim, Salto de Pirapora, Piedade, Sarapuí e Araçoiaba
da Serra, num total de 84 mil alqueires de extensão.
Em
Votorantim, entre as áreas que pertencem aos descendentes de José
Joaquim de Camargo está o bairro Votocel, onde até os dias atuais vive
ali uma comunidade quilombola. Outros familiares moram um pouco mais
afastados, na estrada que dá acesso a Piedade. Em Sorocaba, a área que
pertence aos Camargo compreende o local onde estão instaladas a UFSCar e
a Universidade do Cavalo.
Os descendentes possuem uma
escritura datada de 2 de novembro de 1874 comprovando que José Joaquim
de Camargo comprou aquelas terras do capitão Jesuíno de Cerqueira Cezar
ao preço de 400 mil réis. A escritura descreve a área adquirida, porém o
faz por córregos e cachoeiras.
Conforme o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a documentação ainda não foi
emitida porque até o momento, as informações prestadas pela comunidade
Os Camargo são insuficientes para se delimitar o território quilombola,
tanto no que se refere à ocupação histórica quanto à área que está sendo
reivindicada.
O Incra afirma que tem buscado, por meio de
reuniões e conversas com a comunidade, levantar esses dados para dar
continuidade ao processo de reconhecimento da área, mas depende das
informações da comunidade (autodeterminação). Uma nova reunião com o
grupo deve ocorrer em breve com a finalidade de resolver a questão. A
data não foi divulgada.
Preocupada com a demora dos
documentos, a comunidade Os Camargo se reuniu com o deputado Hamilton
Pereira (PT) no começo do ano para pedir ajuda com relação à agilidade
desse processo. O deputado afirma que assumiu o papel de intermediário
nos entraves burocráticos, tentando acelerar o processo. No início de
março, o parlamentar esteve no Incra, em São Paulo, para tratar do
assunto e a informação é que, pela complexidade do caso, será realizado
um fórum ampliado com as comunidades da região e os órgãos nacionais,
como o Incra, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(Seppir) e a Fundação Palmares, entre outras entidades que possuem
relação com o tema. Ainda não há uma data, mas foi sinalizado que possa
ocorrer entre o final de abril e início de maio deste ano. Assim que for
definida a data, o deputado se comprometeu a ajudar na articulação do
local.
Como é feito o reconhecimento
As comunidades quilombolas são grupos étnicos - predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana -, que se autodefinem a partir das relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias. Estima-se que em todo o País existam mais de três mil comunidades quilombolas.
O Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Em 12 de março de 2004, o Governo Federal lançou o Programa Brasil Quilombola (PBQ) como uma política de Estado para as áreas remanescentes de quilombos. O PBQ abrange um conjunto de ações inseridas nos diversos órgãos governamentais, com suas respectivas previsões de recursos, bem como as responsabilidades de cada órgão e prazos de execução.
É a própria comunidade que se autoreconhece "remanescente de quilombo". O amparo legal é dado pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, cujas determinações foram incorporadas à legislação brasileira pelo Decreto Legislativo 143/2002 e Decreto Nº 5.051/2004. Cabe à Fundação Cultural Palmares emitir uma certidão sobre essa autodefinição.
Com base na Instrução Normativa 57, do Incra, de 20 de outubro de 2009, as comunidades interessadas devem encaminhar à Superintendência Regional do Incra do seu Estado uma solicitação de abertura de procedimentos administrativos visando à regularização de seus territórios. Após sair a documentação, a fase seguinte do processo administrativo corresponde à regularização fundiária, com desintrusão de ocupantes não quilombolas mediante desapropriação e/ou pagamento de indenização e demarcação do território. O processo culmina com a concessão do título de propriedade à comunidade, que é coletivo, pró-indiviso e em nome da associação dos moradores da área, registrado no cartório de imóveis, sem qualquer ônus financeiro para a comunidade beneficiada.
Remanescentes de quilombos vivem em estado de pobreza extrema
"Estamos esquecidos e ainda separados das pessoas pelo matagal", diz Rosana Vieira Noronha - FÁBIO ROGÉRIO
No bairro Votocel, separadas da população
ali residente por um matagal, moram 15 famílias remanescentes de
quilombos. A situação é de pobreza extrema e os descendente do escravo
José Joaquim de Camargo vivem ali em um aglomerado de barracos, sem
direito à água e luz elétrica, que alguns possuem devido a "gatos".
"Algumas famílias fizeram a instalação de modo irregular porque estamos
cansados de pedir e termos esses benefícios negados, apesar do programa
Luz Para Todos, do governo, essa luz não chega pra nós", diz Rosana
Vieira Noronha, responsável pela comunidade. Rosana é casada com o irmão
de João, tataraneto de José Joaquim.
Rosana consegue sustentar os quatro filhos, uma sobrinha e um irmão
vendendo frutas como abacate e banana e ainda catando material para
reciclagem. "A igreja também nos ajuda", conta ela, que já tentou
desenvolver um projeto de pesca, mas não conseguiu. "Aqui nada acontece.
Estamos esquecidos e ainda separados das pessoas pelo matagal."
A maioria dos moradores daquele local se reconhece como quilombola,
afirma Rosana. "Mas a gente não tem cultura preservada. Nossa atividade é
limpar quintal, catar lixo para reciclagem. A gente não tem estrutura,
queríamos um barracão para desenvolver um projeto de geração de renda,
artesanato...", diz.
João recorda que seu pai, que morava ali e criou os filhos naquele
local, fazia balaio com bambu e paçoca no pilão. "Infelizmente
enterraram tudo da nossa tradição", lamenta João.
Ele lembra que desde 1979 ia com o irmão pegar documentos na Cúria
Diocesana de Sorocaba. "A gente ia para Piedade, Sarapuí, percorríamos
os cartórios. Agora se tivermos o Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação (RTID) nas mãos, as coisas começam a fluir", diz.
Ainda de acordo com João, muitas informações foram obtidas com a
ajuda do pesquisador Sílvio Vieira de Andrade Filho, autor do livro Um
Estudo Sociolingüístico das Comunidades Negras do Cafundó, do Antigo
Caxambu e de seus Arredores. "Ele inclusive tem documentos que não temos
e foi com o Sílvio que obtivemos informações da nossa árvore
genealógica", comenta João.
A maior mágoa da comunidade é não ter o reconhecimento histórico e
ser proprietária de terras que estão invadidas. "A gente aqui é rico e
vive como pobre", reclama Rosana, que lembra que tem 16 pedreiras
instaladas nas terras dos Camargo.
A responsável pelo quilombo do Votocel afirma que o povo ali está
cansado de sofrer. "Entra ano, sai ano são só promessas. A gente aqui
sofre discriminação e por isso consegue nem emprego, vivemos de sobras",
diz ela. Com o que Rosana e os outros moradores mais se preocupam é com
a falta de iluminação nas ruas, o que torna o local perigoso para as
crianças e principalmente para os adolescentes que estudam à noite. "Meu
filho chega depois das 23h... Além da falta de iluminação, nós abrimos
um caminho no meio do mato para as crianças terem acesso mais fácil para
irem à escola. Os políticos vêm aqui só em época de eleição, pedir voto
e fazer promessas. A gente pediu tanta coisa, mas nunca conseguimos
nada, nem mesmo temos vagas garantidas em creches", diz.
O local, por ficar próximo a um matagal, está cheio de cobra,
escorpião e caramujos. As crianças, conta Rosana, vivem picadas por
carrapatos. "Quando conquistarmos o reconhecimento e tivermos o RTID, o
que a gente quer primeiro é que a comunidade seja atendida pelos órgãos
responsáveis. Enquanto não tivermos o RTDI nas mãos, as políticas
públicas não chegarão a nós", dizem Rosana, o cunhado João e os primos
Luiz e Edson (também tataraneto de José Joaquim de Camargo). (
Daniela Jacinto)
Família se espalhou e terras foram invadidas
Luta pela recuperação territorial e de direitos teve início há cerca de 100 anos, com um dos netos de José Joaquim de Camargo
Área quilombola em Votorantim - FÁBIO ROGÉRIO
"Somos os verdadeiros donos destas terras", desabafa João Fernandes, vice-presidente da Associação Remanescentes de Quilombo José Joaquim de Camargo - Núcleo Votorantim. A vontade maior dos descendentes de José Joaquim de Camargo é serem incluídos na história das cidades da região, onde seu familiar adquiriu as terras. "Nós temos história, que é de 1874 para trás", afirma. A contribuição dos bandeirantes, dos tropeiros para a formação das cidades é sempre lembrada, mas a dos negros não, o que desagrada muito a comunidade, que quer ser reconhecida como contribuidora da história e que sejam relatadas as suas ações na sociedade.
João Fernandes lembra que José Joaquim de Camargo, seu tataravô, era negro e escravo. "Ele foi braço direito do capitão Jesuíno de Cerqueira Cezar", relata.
Como tinha algumas economias resultantes de seu trabalho, José Joaquim pôde comprar as terras, que eram ricas em minério. A primeira coisa que ele fez foi construir uma capela onde hoje é o bairro Itinga, a capela existe ainda nos dias atuais e é conhecida como Capela do Itinga. As terras onde hoje está esse bairro eram usadas para plantar arroz.
José Joaquim foi casado por duas vezes e teve sete filhos. Casou primeiro com Benedita Maria Nogueira, da Fazenda dos Pretos, com quem teve seis filhos. Anos depois realizou o segundo casamento com Delfina Leme do Espírito Santo, com quem teve um filho. Delfina era sobrinha do prefeito de Salto de Pirapora, Agenor Leme dos Santos.
A família se espalhou, as terras foram invadidas e a luta pela recuperação territorial e de direitos teve início há cerca de 100 anos, com um dos netos de José Joaquim, João Batista de Camargo, pai de Luiz Carlos Batista de Camargo, que desde os 14 anos de idade acompanha seu pai nessa verdadeira batalha. Luiz hoje está com 56 anos, são portanto 42 anos de visitas a terras, que ele diz conhecer muito bem. "Conheço toda a área ponto por ponto, sei inclusive como começaram as invasões", afirma ele, que é presidente da Associação Remanescentes de Quilombo do bairro do Itinga - Núcleo Sorocaba. Aqui na cidade, Luiz afirma que 27 famílias são quilombolas. "O bairro Inhayba pertence à gente também. Poucos sabem, mas lá tem um cemitério de escravos datado de 1730", revela.
Mesmo com a certidão de compra das terras deixada por José Joaquim, a comunidade quilombola está com dificuldade em ser reconhecida como tal. Primeiro a documentação ficou parada durante oito anos na Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp). Quando a responsabilidade passou para o Incra, em 2003, Os Camargo esperavam ter o problema solucionado de forma mais rápida, no entanto ainda aguardam a regularização de sua situação. "Só falta a demarcação, dizem que não tem verba, mas para fazer coisas da Copa eles têm, custa R$ 60 mil para fazer essa demarcação, mas não fazem. Nossa surra hoje é a caneta", diz João Fernandes.
As lutas pelas terras são feitas de forma organizada e as responsabilidades divididas em três associações: a de Votorantim, Sorocaba e Salto de Pirapora. Eles sabem que a maioria das terras hoje está ocupada e que será impossível reaver essas áreas, mas querem o direito dos impostos recolhidos pelos municípios ou as respectivas indenizações.
1.281 processos em andamento no Incra
Em todo o Brasil, o Incra possui 1.281 processos de regularização de
territórios quilombolas em andamento. Até o momento, foram publicados
160 editais de Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação
(RTIDs), totalizando 1.651.425,5375 hectares em benefício de 21.758
famílias. Quinze deles foram publicados em 2012 e 2013. Outros 215 RTIDs
estão em elaboração no Incra. O RTID é um documento essencial para a
regularização das terras e é composto por relatório antropológico,
relatório agroambiental, cadastro das famílias, levantamento fundiário
da região, planta e memorial descritivo do território. (Fonte: Incra)